Os polícias maus da Europa

Nada ficou como estava: a Europa, depois do Conselho do Eurogrupo, um órgão informal que não existe na arquitectura da União Europeia, ao impor as condições humilhantes à Grécia, mostrou o nível de degradação das relações pessoais e o baixo nível da política europeia, provando afinal que a Eurozona não é uma união monetária, mas uma região com um sistema de câmbios fixos – mais próximo do Sistema Monetário Europeu anterior a 2000.

O que ficou claro é que os alemães colocam em primeiro lugar a Lei (entenda-se o seu diktat), e só depois vem o mercado. A maneira de pensar alemã na Europa marcou o acordo de princípio com a Grécia.

Com tal exibição do orgulho alemão, a opinião pública internacional está emocionalmente do lado da Grécia. Mas uma sondagem realizada na segunda-feira refere que a maioria dos gregos quer que o seu parlamento aprove o acordo e o país se mantenha no euro. Na Grécia, o primeiro-ministro prepara uma remodelação do governo, enquanto, na rua, os sindicatos anunciam a primeira greve da Função Pública que o governo do Syriza vai enfrentar.

Do lado europeu também há reservas. O financiamento da ponte prevista para o 3.º resgate à Grécia, que deveria ser assegurado pela UE, está a levantar polémica no Ecofin. Países que não fazem parte do euro, como o Reino Unido, República Checa e Suécia, não querem participar no financiamento da ponte proposta para suster a falência, que ameaça a Grécia ainda antes da assinatura final do acordo: “A Zona Euro tem de pagar o seu próprio projecto de lei”, disse sobre o assunto o chanceler britânico do Tesouro, George Osborne.

Entretanto, já depois do acordo de princípio no Eurogrupo, o Fundo Monetário Internacional veio sugerir que durante 30 anos a Grécia não pague o que deve aos credores europeus – um alívio da dívida, que se tornou “altamente insustentável”, de acordo com o próprio FMI.

Num relatório interno, o FMI revela que, até 2018, a dívida da Grécia deve atingir um “pico próximo dos 200% da riqueza produzida pelos gregos”.

As estimativas sobre a evolução da dívida foram também actualizadas e agravadas pelo encerramento dos bancos. Recorde-se que, no segundo resgate, a Grécia obteve também um adiamento de 10 anos no pagamento da sua dívida ao MEE e ao FEE, bem como ao FMI.

Perante a recusa dos credores europeus em perdoar a dívida grega, o Fundo Monetário sugere que aumentem “drasticamente” o período de carência do início do reembolso dos empréstimos de 10 para 30 anos – isto numa altura em que se discute a possibilidade de um terceiro resgate à Grécia, que pode chegar aos 86 mil milhões de euros.

Esta posição contrasta com a dureza inicial dos EUA e do secretário do Tesouro americano que dita as posições do Fundo. Os americanos querem atenuar as medidas de austeridade impostas pela Alemanha no Eurogrupo, para evitar que os problemas de estabilidade na zona do euro se transformem em problemas estratégicos no Mediterrâneo Oriental, numa altura em que a desconfiança entre os Estados-membros da União faz com que passos novos na integração sejam absolutamente impossíveis.

 

Por que Merkel e Schäuble foram tão duros com Atenas?

 

A postura de linha dura da Alemanha, nas negociações do fim-de-semana sobre uma nova ajuda à Grécia, surpreendeu até mesmo os veteranos da política europeia.

Com Atenas nas cordas, tendo capitulado à maioria das exigências dos seus credores, muitos esperavam que Angela Merkel fosse mais flexível relativamente ao papel da União Europeia no resgate, invocando a importância da solidariedade.

Em vez disso, a chanceler chegou à cimeira de domingo de armas em punho.

“A moeda mais importante que foi perdida foi a confiança e confiabilidade”, disse ela, apenas alguns segundos depois de sair do seu Audi preto. “Nós vamos ter discussões difíceis e não haverá um acordo a qualquer preço.”

Basicamente não respondeu a nenhuma pergunta, mas sossegou os alemães. E esta é a única explicação razoável para o que se passou em Bruxelas no domingo.

A coreografia foi perfeita. Algumas horas mais tarde, a declaração à chegada de Merkel abriu o principal noticiário da noite na emissora estatal alemã, a ARD.

Durante anos, os alemães médios protestaram contra os biliões de dólares em dinheiro do resgate que a Grécia recebeu. No total, a Alemanha já deu cerca de 90 mil milhões de euros. Se o resgate actual chegar a concretizar-se, o total provavelmente vai aumentar em cerca de 20 mil milhões de euros. Esses compromissos podem ser na forma de garantias, mas a maioria dos alemães vê-os como dinheiro perdido.

As sondagens que Merkel segue dizem que o suporte para um resgate grego nunca esteve tão em baixo. Quase metade dos alemães querem que a Grécia saia do euro – a percentagem mais baixa numa pesquisa em vários países europeus publicada pela YouGov na sexta-feira.

Enquanto na Europa muitos esperavam que a cimeira deste fim-de-semana iria acabar com a crise grega, com um acordo para abrir novas conversações sobre um pacote de socorro, o que aconteceu, por insistência de Merkel, foi que Atenas recebeu um ultimato para, em 48 horas, aprovar o pacote de reformas no parlamento, como uma pré-condição não-negociável para a retoma das negociações definitivas do resgate. Uma humilhação que Tsipras já terá garantido conseguir, apesar da erosão da sua base partidária de apoio, como o suporte dos deputados da oposição de direita e socialista.

 

Nenhuma mensagem de amor de Schäuble

 

O ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, foi ainda mais insultuoso, argumentando no fim-de-semana que a Grécia deve considerar a suspensão temporária da zona do euro, para poder fazer políticas que na Zona Euro não são possíveis, como explicou Passos Coelho na entrevista de terça-feira à SIC. A sua posição dura sobre a Grécia granjeou-lhe um amplo louvor na Alemanha, onde o seu índice de aprovação superou o da chanceler Merkel.

Isso significa que Merkel terá que contar com o apoio de Schäuble para vender outro resgate aos alemães. Sem ele, ela correria o risco de perder, não apenas o apoio do público alemão, mas o do seu próprio grupo parlamentar.

Schäuble tem desempenhado um papel central na mobilização de apoio para  últimos resgates entre os democratas-cristãos e terá de fazê-lo novamente. Isso pode explicar por que Merkel não se afastou demasiado da posição do seu ministro, usando um tom mais comedido, mas não se desviando na substância.

O Bundestag terá de aprovar um eventual acordo com a Grécia, o que implicará enfrentar uma batalha intensa com os democratas-cristãos.

Há poucas dúvidas de que Merkel vai conseguir aprovar o resgate da Grécia, dado que, tanto os social-democratas, seus parceiros de coalizão, como a oposição, apoiam o resgate.

No entanto, o debate dentro do seu próprio partido, que foi responsável por quase toda a oposição nos últimos votos na Grécia, será intensa. Oponentes da ajuda entre os democratas-cristãos sentir-se-ão “vingados” apenas no caso do fracasso do resgate. Para manter a credibilidade entre a sua base, Merkel terá de superar esta eventual dissidência.

A questão é o quanto ela os pode tolerar sem que eles se afastem do partido. Os últimos resgates levaram à formação do Partido da Alternativa antieuro para a Alemanha (AFD). Este partido ganhou a eleição para o Parlamento Europeu e um número de legislaturas estatais, mas está agora em dificuldades, depois da viragem para a direita, com uma mensagem mais nacionalista, que divide a sua liderança.

A turbulência no AFD pode torná-lo uma ameaça menor imediatamente, mas a profunda oposição na Alemanha aos resgates não se vai dissipar tão facilmente.

 

Europa em linha

 

Uma estratégia para um outro resgate pode ter implicações de dimensão europeia. A intransigência aparente da Alemanha sobre a Grécia nas últimas semanas tornou tensas as relações com a França e a Itália, sendo que ambas têm defendido uma abordagem mais suave. Estes países ficaram particularmente surpreendidos com a proposta de Schäuble para, essencialmente, colocar em quarentena a Grécia fora da Zona Euro, um passo que poderia desencadear efeitos em cadeia na zona da moeda. Paris e Roma estavam preocupadas com os efeitos colaterais negativos que os debates sobre a Grécia podem fazer a longo prazo à unidade europeia.

 

E a França e a Itália não estão sozinhas. Na Alemanha, o “Frankfurter Allgemeine Zeitung”, um diário conservador influente, advertiu, num comentário publicado na segunda-feira, que a crise começou já a ameaçar a relação franco-alemã.

“A estratégia política da Alemanha na UE tornou-se mais alemã”, disse o jornal na sua primeira página. “Esse é um problema muito mais alarmante do que o da Grécia. Se duas das principais potências da Europa não estão a prosseguir objectivos comuns, o futuro da Europa será escuro.”

 

A relação da Alemanha com a França é a base do seu empenhamento europeu e a pedra angular da UE. Berlim alinhou na integração europeia para garantir que não está ameaçada, por causa da paz com a França. Se Merkel precisar de novos pretextos, pode argumentar que salvar a Grécia é o preço que a Alemanha terá de pagar para preservar a unidade franco-alemã, um argumento que, provavelmente, tem ressonância dentro e fora do seu partido.

Falando na noite de domingo, depois de participar na cimeira de Bruxelas, um sombrio Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu, disse que, nos muitos anos que tem de Bruxelas, nunca tinha experimentado uma atmosfera pior.

“Não se trata de um compromisso num sentido ou no outro”, disse ele, numa entrevista à televisão alemã. “Vamos ser honestos, esta noite a questão central é sobre se a Europa permanece unida ou não.”

“Mesmo que um acordo final venha a ser alcançado, eventualmente, para manter a Grécia na zona do euro, as ramificações da sangria incrível deste fim-de-semana terão consequências a longo prazo”, disse, por seu lado, James Nixon da Oxford Economics.

“O dano causado às relações entre a França e a Alemanha pode ser irremediável, além de que a sugestão alemã de que à Grécia fosse concedida a possibilidade de sair da área do euro, ainda que por um prazo de cinco anos, certamente representa a quebra definitiva do princípio de que a adesão à Zona Euro é irrevogável.

“Além disso, a visão da Grécia a ser efectivamente pendurada a secar certamente irá desencadear uma reacção popular contra a austeridade. Essa fractura pode agora tornar mais exposta a clivagem entre os políticos do Sul da Europa e os governos do Norte.”