Como o Banco de Portugal forjou a acusação

O processo de contra-ordenação montado pelo Banco de Portugal para condenar o BCP e os seus dirigentes é uma página negra na história da Instituição. É o exemplo de como pode a autoridade de supervisão ser, ela própria, a verdadeira infractora, chegando ao extremo de perverter os factos para forjar a acusação e, depois, a condenação. E, acrescente-se, para esconder faltas próprias e ficar de bem com a opinião pública.

O Banco de Portugal teve um comportamento inqualificável. Ao contrário do que quis fazer crer o Banco de Portugal não descobriu o chamado “Caso BCP” em Dezembro de 2007, pois conhecia os factos desde 2001. Tanto que os analisou e discutiu entre 2001 e 2004, e sobre eles decidiu em 2004 (no termo das averiguações). E em 2006 voltou a analisar e decidir, quando teve de julgar sobre uma denúncia do BPI.

Em Janeiro de 2008, quando iniciou o processo de contra-ordenação, o Banco de Portugal não tinha a menor dúvida de que os factos denunciados por Joe Berardo já tinham sido, por si, analisados, e estavam esclarecidos e resolvidos. Os documentos anexos à primeira denúncia de J. Berardo (28.11.2007) eram, basicamente, os que constavam da pasta entregue pelo BPI.

E o Banco de Portugal bem sabia que nenhuma correcção às contas do BCP era necessária, de tal forma que nunca a determinou ou, sequer, recomendou. Não deixa de ser paradoxal que uma autoridade de supervisão acuse um banco de “falsificação de Contas” e não tenha ordenado a respectiva correcção, se considerava que havia alguma coisa a corrigir.

Mas o Banco de Portugal sabia mais. Sabia que, dos factos denunciados – e, mais tarde, imputados ao BCP e aos seus administradores e directores -, nenhum prejuízo tinha resultado, ou viria a resultar, para o banco, os seus accionistas e clientes. Esta evidência foi repetidamente alegada nas audiências de julgamento. Sem qualquer explicação, o Ministério Público optou por ignorar os factos alegados, e o tribunal também os omitiu na decisão condenatória.

O mal vinha de trás, do processo de contra-ordenação ardilosamente montado pelo Banco de Portugal. Numa peça que deveria envergonhar qualquer supervisor, o Banco de Portugal pretendia que o BCP consolidasse as contas das sociedades off-shore, quando essa consolidação era proibida (anos de 2000 a 2004). Aceitando que as sociedades off-shore, afinal, não eram do BCP, o supervisor defendeu (em 2008/11) que o BCP deveria registar Imparidades, nos exercícios de 2002 a 2004, quando o regime que as regula foi criado em 1 de Janeiro de 2005, data em que as sociedades off-shore já não existiam. Esta é uma contradição insanável, que o banco central se escusou a explicar e parece ter passado despercebida ao Tribunal.  

Estes dois factos, centrais em toda a acusação, bem demonstram até que ponto o Banco de Portugal foi capaz de distorcer a realidade e, em última análise, enganar o Ministério Público e o Tribunal.

Nas audiências de julgamento, ficou patente que o processo só existia porque o Banco de Portugal tinha de justificar o “pecado original”: a ilegítima intervenção do seu governador na guerra de accionistas que eclodira no BCP, final de 2007, quando um grupo organizado agiu para se apoderar do controlo do banco.

Consciente da ilegitimidade da intervenção do governador, o Banco de Portugal foi compelido a mistificar os factos para obter a condenação do banco e dos seus dirigentes, num processo em que se prevaleceu do facto de ser, ao mesmo tempo, acusador e julgador. Nessa situação privilegiada, como poderia o julgador não validar as falsidades inventadas pelo “acusador” para forjar a condenação?

Vale a pena lembrar que o Banco de Portugal condenou quando era presidido por um governador que tinha ilibado o BCP por duas vezes (Vítor Constâncio) e recorreu da decisão do tribunal (de arquivamento do processo) quando era dirigido por uma pessoa que teve intervenção directa (e fulcral) nos factos em julgamento (Carlos Costa). Não foi, pois, por inadvertência que ambos deram o “visto bom” aos erros da acusação e da condenação.

Para corrigir as arbitrariedades do Banco de Portugal, os condenados recorreram para o tribunal, que decidiu em dois momentos diferentes: primeiro, pelo arquivamento do processo, depois, pela condenação dos arguidos.

Que aconteceu entre uma e a outra decisão, ao ponto de levar o Juiz a fazer a “inversão de marcha” na fundamentação da decisão de arquivamento exarada na sentença? Dois factos: (a) o conhecimento de que os factos imputados a Jardim Gonçalves tinham prescrito, entre o primeiro e o segundo Julgamento; e (b) as acusações dirigidas ao Juiz do processo, das quais este teve de defender-se, obrigando, mesmo, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura a comparecer na Assembleia da República para explicar aos deputados as rezões da prescrição. As contrariedades “vacinam” quem nelas é envolvido, não sendo de espantar que, em decisões futuras, opte por caminhos onde o risco de contestação seja menor: a paz do sepulcro!

Essa opção é mais evidente na actuação do Ministério Público em todos os julgamentos do chamado “Caso BCP”: em todos optou por ficar de bem com a opinião pública, mesmo com o risco de o comportamento poder ser visto como consequência de três pecados capitais: preguiça, demagogia incompetência: (a) preguiça, porque o MP nada investigou, preferindo louvar-se nas (falsas) razões que o Banco de Portugal usara para condenar; (b) demagogia, porque o MP quis agradar “ao povo”, que exigia a condenação de “colarinhos brancos”; (c) incompetência, porque o MP não tinha o conhecimento, nem os meios, que ajudassem à compreensão de um processo tecnicamente complexo, um “puzzle” armadilhado pelo Banco de Portugal com mais de 30.000 folhas, com o objectivo evidente de fazer desistir qualquer humano com vontade de o desbravar.

Nos dois julgamentos realizados para apreciar os recursos das condenações na fase administrativa, o Banco de Portugal acusou de forma falaciosa, bem sabendo que as condenações por si decididas estavam feridas por falta de base factual. Tanto assim que, em tribunal, os “pilares” do processo de contra-ordenação (o “plano”, a manipulação das cotações, a utilização de SPE’s para acorrerem aos aumentos de capital do BCP, etc.) foram desmontados, um a um, pelas defesas. Perante as evidências, o Banco de Portugal ensaiou o velho recurso de tentar “tapar o sol com a peneira”: à medida que as suas teses eram destruídas pela prova produzida, foi apresentando novas versões para as “ilicitudes” imputadas no processo administrativo.

Em tribunal, o Banco de Portugal agiu de forma lamentável, enquanto autoridade à qual compete actuar de forma isenta e imparcial. E em ambos os julgamentos ficou evidente que as únicas ilicitudes provadas foram as cometidas pelo Banco de Portugal, para mistificar a acusação e “justificar” a condenação dos arguidos.

Infelizmente, no segundo julgamento, o tribunal deixou-se condicionar por factores externos ao processo, designadamente as condenações decididas no processo da CMVM. Condenações que, de forma inaudita, reproduziram, palavra por palavra, a decisão recorrida (a decisão da CMVM). Era a forma de não “fazer ondas”, leia-se, de a decisão ser pacificamente acolhida pelos jornais, que se eximiriam a comentários sobre um notório erro da Justiça.

Num exemplo claro de fuga à função que lhe competia, e à missão de que estava investido, o tribunal optou por não julgar o recurso, preferindo copiar, ipsis verbis, a condenação recorrida. Era a “apólice de seguros” para quem tinha julgar. Mas isso significou que… o julgamento não existiu.

Conhecedor dos factos passados no processo da CMVM – a evidência de que é a omissão, e não a acção, que mais facilmente recebe prémio – no segundo julgamento, o tribunal absteve-se de julgar e manteve a decisão recorrida. Pela segunda vez ficou demonstrado que a recusa de julgar funciona mesmo: é “escudo protector” que evita problemas, críticas e acusações.

Para todos os efeitos, quer no julgamento do recurso das condenações da CMVM, quer no das condenações do Banco de Portugal, os arguidos ficaram privados de um direito fundamental, que a Constituição lhes garante: o direito ao recurso das decisões das autoridades administrativas.

Com a presente decisão, o Tribunal da Relação de Lisboa vem reconhecer, embora tardiamente, um erro calamitoso da Justiça. Mesmo assim, só parcialmente o faz: anula, apenas quanto a alguns, erros de julgamento de factos passados há 15 anos, pelos quais os arguidos cumpriram, e continuam a cumprir, as pesadas penas decretadas pelo Banco de Portugal há mais de sete anos.