Os partidos tradicionais de centro-esquerda tiveram resultados eleitorais difíceis e baixos índices de votação num número de países europeus, nestes últimos anos, nomeadamente o Partido Trabalhista do Reino Unido, o SPD da Alemanha, o PS de França e o PSOE de Espanha.
No entanto, uma excepção importante foi o sucesso de Matteo Renzi e do seu Partido Democrata (PD), em Itália, que tem desfrutado de votações fortes desde que Renzi se tornou primeiro-ministro, em Fevereiro de 2014. O sucesso de Renzi serve para avaliar se há lições para os outros partidos de centro-esquerda na Europa, nomeadamente em Portugal, dada a proximidade das eleições legislativas, onde o líder socialista António Costa parece não descolar nas sondagens.
A atual liderança de Matteo Renzi em Itália e o relativo sucesso do seu Partido Democrático (PD) não podem ser facilmente compreendidos sem apreciar o contexto do qual eles nasceram. Apesar de ter apenas três anos de idade, no início de 2010, o PD foi encarado pela maioria do eleitorado como o resultado de uma tentativa frustrada de remodelar completamente o velho centro-esquerda italiano. A maioria de seus líderes já haviam estado activos nas décadas anteriores, nomeadamente no Partido Comunista Italiano. O PD não tinha uma estratégia de identidade e comunicação fortemente definida. Apesar dos muitos anos e dos fracassos dos governos liderados pelos Berlusconi, o PD aparecia como sendo subordinado ao centro-direita na definição da agenda e incapaz de levantar-se como uma alternativa credível, muito à semelhança do que está a acontecer com António Costa.
Beneficiando da sua bem-sucedida experiência como prefeito de Florença e da sua participação limitada na política nacional no passado recente, Renzi propôs-se como a vanguarda de uma nova liderança, aparecendo como símbolo de uma Itália nova contra a velha Itália de Berlusconi. Um dos fundamentos da sua plataforma era a missão de rottamazione, ou seja, o desmantelamento da velha liderança. Ao fazer campanha contra a élite governante do PD, Renzi foi capaz de abalar o campo dos jogos políticos tradicionais, apresentando uma nova identidade para o centro-esquerda italiano. Exatamente o contrário do que António Costa fez no Partido Socialista, ao recuperar a velha guarda socrática e manter o baronato tradicional, apagando a tentativa de renovação de António José Seguro.
Renzi assumiu decididamente uma agenda definida de reformas liberais que ameaçavam interesses conservadores ao longo de todo o espectro político e da sociedade, de uma forma que transcende a separação tradicional entre esquerda e direita. A divisão entre esquerda e direita deixou de fazer sentido. Passou a falar-se de uma divisão entre o velho e novo.
Adoptou também uma estratégia de comunicação moderna, substituindo as mensagens sombrias da liderança tradicional por uma mensagem nova e positiva. Enquanto isso, do outro lado do espectro político, o centro-direita italiano tem lutado para encontrar uma alternativa que preencha o vazio deixado pela queda de Berlusconi, e permitido a consolidação de Renzi. Ora, esta situação também não acontece com António Costa, pois o centro direita nacional foi capaz de construir uma coligação que se mantém fiel ao discursos da última legislatura e tem resultados para mostrar.
O que explica o sucesso de Renzi?
A breve história do PD é também a história da introdução de mecanismos institucionais de democracia participativa em Itália. Desde a sua fundação, em 2007, o PD realizou eleições primárias para a nomeação dos seus dirigentes e candidatos em quase todos os níveis de governo. Assim, o partido tem sido capaz de responder à crescente participação popular, que tem sido um dos pilares fundadores de novos actores políticos, como Beppe Grillo, do Movimento Cinco Estrelas.
As eleições primárias melhoraram a prestação de contas dos líderes, permitindo desafiar as lideranças e favorecendo a renovação partidária. Um exemplo são as eleições primárias de Dezembro de 2012, onde um milhão de eleitores tiveram a oportunidade de escolher os candidatos do partido a futuros deputados. Isso levou a uma mudança sem precedentes na composição demográfica dos deputados eleitos, no sentido de estabelecer o equilíbrio de género (graças à adopção de regras de votação com base no género) e uma menor média de idade. Ora em Portugal, António Costa rejeitou as primárias propostas pelos seguristas e desde a sua vitória à recusa de primárias para deputados, tudo indica no PS a manipulação dos homens do aparelho socrático e dos velhos financiadores autárquicos. A própria escolha de Jorge Coelho não ajudou à confiança no escrutínio eleitoral que afastou António José Seguro da liderança do PS.
Esses mecanismos institucionais de democracia participativa têm, em Itália, constituído a base para a melhoria da prestação de contas dos líderes e têm facilitado uma mudança de liderança rápida e eficaz. Um ano depois de ter sido derrotado na corrida das primárias a candidato do PD a primeiro-ministro, nas eleições de 2013, Renzi foi nomeado secretário do partido com 68% dos votos, nas primárias de Dezembro 2013. O seu rival, Pier Luigi Bersani, fracassou na sua tentativa de formar um governo com o PD e o seu sucessor, Enrico Letta, lutou em vão para governar numa grande coligação com o centro-direita, um espectro que poderemos ver também a seguir às legislativas de Outubro em Portugal. A turbulência interna e o realinhamento dos antigos e novos interesses, após a nomeação de Renzi como líder, foi fatal para o governo de Letta e, finalmente, levou à exoneração do ex-primeiro-ministro.
Uma terceira via organizada no terreno
Cerca de um mês após a nomeação de Renzi como chefe de governo, o ex-primeiro-ministro e líder histórico do centro-esquerda, Massimo D’Alema, afirmou, numa entrevista à TV: “Renzi tem sucesso porque bate Berlusconi no mesmo campo de batalha”. Esta citação é reveladora, por várias razões. Por um lado, destaca-se a inadequação da frustrada antiga liderança PD para entender a redefinição em curso do campo de batalha político, o que parece acontecer com António Costa. Por outro lado, ela também destaca a incapacidade ou a falta de vontade do velho establishment de centro-esquerda para procurar activamente o apoio eleitoral em todo o espectro eleitoral e, em última análise, para transformar a sua luta tradicional num paradigma de conservadorismo.
O sucesso de Renzi em quebrar o impasse na política italiana reside no ênfase dado ao mérito sobre a igualdade: além da chamada ‘vetocracy’, em que nenhum actor pode ter força suficiente para assumir o comando eficazmente, afirmando uma ideologia baseada na tomada de decisão real. Também aqui António Costa não soube assumir a supremacia do mérito sobre a igualdade e romper com a ideologia tradicional da esquerda. Mesmo o programa eleitoral apresentado no sábado passado acaba por ser o compromisso possível entre uma política de centro-direita vitoriosa na Europa e velhos chavões de igualdade da esquerda socialista.
Ao contrário do que acontece no PS, onde mesmo em vésperas de eleições é clara a divisão das hostes e as críticas de seguristas e até de José Sócrates, Renzi tem demonstrado em várias ocasiões, com base na crescente unidade dentro do PD, uma abordagem sem escrúpulos – mesmo maquiavélica -, na busca de apoios para os seus objetivos, através da adopção de uma maioria de “geometria variável”. O exemplo mais proeminente é provavelmente a legitimidade inicial dada a Berlusconi como líder da Oposição – que foi crucial para permitir que o governo passasse o seu pacote de reformas do mercado de trabalho, conhecida como a Lei de empregos. Este apoio foi dado a Berlusconi só para descartá-lo mais tarde, durante as negociações sobre a nomeação do Presidente da República.
António Costa não teve até agora, por exemplo, a inteligência para usar o que resta da legitimidade de Cavaco Silva em seu benefício, deixando o centro-direita com a possibilidade de tirar partido do ascendente comunicacional e político de Belém, mesmo detestando o Presidente da República, que representa o Portugal envelhecido e “bom aluno”.
Finalmente, apesar de alguns compromissos difíceis e medidas impopulares, Renzi ainda pode alegar ter irritado alguns interesses e ter cumprido algumas das promessas que tinha feito no início do seu mandato, com uma reforma da lei eleitoral do país. Até à data, o preço político a pagar tem sido o crescente desconforto da oposição interna no PD e de sectores da sociedade que criticam a determinação de Renzi e a falta de debate político e de ação colegial, que caracterizam a sua forma de estar na política.
O PD de Renzi pode ser visto como um híbrido de, por um lado, o New Labour de Tony Blair, com a sua mentalidade orientada para a reforma, o posicionamento de uma “terceira via” e uma organização territorial partidária eficiente, e por outro, no que toca às sua estruturas organizativas, do Partido Democrata nos Estados Unidos, com o foco em eleições primárias e o potencial para uma renovação periódica da liderança do partido, aliada a uma estratégia de comunicação eficaz. Nada disto o PS conseguiu fazer em Portugal, pelo menos neste ciclo.
Renzi conseguiu construir uma plataforma política que alterou o equilíbrio do sistema partidário italiano, combinando com sucesso uma postura anti-establishment forte, com uma cultura de governo eficaz e tomadas de decisão. Entendendo que, para a centro-esquerda ter sucesso, o partido teve que abandonar sua retórica tradicional e abraçar o reformismo democrático e dinâmico, sempre tendo em mente a necessidade de reduzir o diferencial entre as promessas e a sua implementação.
O pré-requisito para que esta mensagem fosse credível foi a falta de envolvimento de Renzi, na política nacional ao longo das décadas anteriores, ao contrário do que acontece com António Costa. Mas o seu sucesso só foi possível por causa da estrutura interna do PD e pelo facto do partido ser suficientemente flexível para assegurar mudanças de liderança, rápida e eficazmente, a todos os níveis. Também aqui António Costa aceitou as primárias de Seguro, mas impediu as primárias para os deputados.