Austeridade não é garantia suficiente para o FMI

 

Depois das dúvidas do sector privado, são agora os credores públicos que duvidam da austeridade. O Fundo Monetário Internacional (FMI), ao dizer que a austeridade não paga a dívida pública grega e que é necessário um “haircut”, arruína de vez os austeritários europeus, inspirados no radicalismo do discurso libertário americano. Porém, a austeridade não é apenas um discurso ideológico. É a única ferramenta de gestão de crises fornecida pelo quadro institucional vigente, consagrado nos tratados europeus. E, mais que isso, é o único instrumento para garantir a construção europeia nos termos dos Tratados.

 

Qual a lógica por trás da austeridade?

As explicações para as políticas de austeridade dadas durante os últimos cinco anos não possuem grande robustez. Muitos – incluindo economistas famosos e banqueiros centrais – apoiaram os cortes orçamentais para restaurar a confiança do mercado. Os mercados, contudo, quase não ficaram impressionados: os operadores preocupam-se com os lucros – geralmente associados com o crescimento – e os cortes no meio da crise não fizeram nada para aumentar a confiança dos mercados. A austeridade também foi justificada como uma ferramenta para garantia dos credores; mas também parece uma explicação pouco plausível. Em Espanha e Itália, as taxas de juro diferenciais atingiram o seu pico, quanto os governos Rajoy e Monti estavam a fazer cortes draconianos e a aprovar novas leis laborais.

A normalidade foi restaurada apenas por Mário Draghi com o famoso discurso do “o que for preciso”. Os repetidos avisos do FMI de que a dívida grega não é sustentável sugerem que a austeridade não vai salvaguardar os credores públicos também. Recessão induzida pela austeridade faz a dinâmica da dívida pública piorar – e, finalmente, impede o reembolso. Os mercados estavam cientes disso, e não aprovaram os cortes orçamentais. Os credores públicos, no entanto, têm um conjunto de incentivos diferente dos privados – como destaca a luta que levou ao terceiro memorando grego: foi a geopolítica (em particular os interesses americanos na zona) e não a economia que impulsionaram as decisões do Eurogrupo.

Para se entender a insistência na austeridade, tem que se olhar mais longe do que a mera construção institucional da União Económica e Monetária. A UEM é um sistema híbrido, um mercado único sem um único governo. Ela é composta de muitos e diferentes governos, cujas acções são severamente limitadas por tratados internacionais. Em tal contexto, a austeridade não é tanto – ou pelo menos não é só – uma resposta conservadora à crise financeira e fiscal. É, antes, a única ferramenta de gestão de crises fornecida pelo quadro institucional vigente.

Os Estados europeus, em particular os mais poderosos, querem desfrutar das vantagens de uma moeda única sem abrir mão da sua soberania e, especialmente, sem ter de pagar as contas dos seus parceiros, mesmo que a especialização económica gerada pela unidade monetária diminua a competitividade de algumas regiões. Isto limita as possíveis alternativas à austeridade.

As políticas orçamentais expansionistas não estão disponíveis porque a Zona Euro é uma união monetária e não há bancos centrais nacionais para monetizar e garantir as dívidas nacionais, que se tornam insustentáveis por causa do design institucional.

A política monetária também não é uma opção: dada a ausência de um governo central, o BCE não tem a autorização para salvar Estados, porque isso significaria transferir o peso da dívida de um Estado para outro, uma possibilidade geopoliticamente insustentável.

Em suma, as políticas fiscais e monetárias são restritivas porque existe uma única autoridade monetária em vez de 19 e esta autoridade monetária não pode intervir porque ainda existem 19 Estados, em vez de uma entidade soberana. As intervenções do lado da oferta são por isso a única ferramenta disponível para manter uma moeda única sem uma união política.

Em muitos aspectos, a UE recriou uma versão moderna do padrão-ouro, um mercado internacional (multinacional, neste caso) com base numa moeda única, com regras imutáveis ​​e mecanismos quase automáticos de ajuste com base em desvalorizações internas.

A austeridade, no entanto, não é apenas uma ferramenta institucional para a gestão de crises, mas também uma acção política per se. O padrão-ouro caiu principalmente por causa da impossibilidade de conciliar as regras desse regime monetário internacional – taxa de câmbio fixa, livre circulação de capitais (e de trabalho) – com os pedidos da sociedade democrática de massa do século XX. Para evitar o mesmo destino do padrão-ouro, a UE precisa de um compromisso credível de todos os Estados-membros. Se todos os governos fossem autorizados a colocar os interesses nacionais antes de os europeus, a coerência da UE ficaria comprometida. Ao impor a austeridade como a única política disponível, a UE reduziu a possibilidade de intervenção dos governos nacionais e assegura a coerência da União.

A Grécia, no entanto, tem violado ambos os critérios deste pacto não-tão-tácito. Ao falsificar a contabilidade pública, Atenas ameaçou a credibilidade da União Monetária e, de acordo com as memórias inéditas de ex-secretário do Tesouro americano, Tim Geithner, tinha de ser punida – via, de facto, um pacote de resgate particularmente duro. Em segundo lugar, primeiro com a proposta Papandreou de um referendo sobre a austeridade, e depois com a insistência do Syriza sobre a alteração dos tratados na base de um mandato eleitoral, a Grécia violou a regra mais importante da UE: a prevalência das regras europeias sobre os interesses nacionais.

Sem surpresa, o referendo grego recente provocou uma resposta irada do Eurogrupo e em particular do governo português de Passos Coelho, com diplomatas nacionais e europeus inflexíveis e a exigirem que as condições para o bail-out fossem particularmente duras, por causa do referendo e para reprimir a “primavera” grega, evitando, assim, qualquer contágio político a Portugal ou a Espanha.

 

Austeridade como pilar da construção europeia

A austeridade é o pilar da construção europeia. Baseia-se em dois níveis diferentes, mas que se comunicam. A nível institucional, é aquele previsto nos tratados originais. A austeridade não é apenas uma política de cortes orçamentais destinados a reduzir a dívida – teria falhado estrondosamente se esse fosse o único objectivo. É, sim, um complexo sistema de desvalorização interna a ser alcançado através de cortes e reformas orçamentais, com vista a aumentar a competitividade. Quanto mais profunda a crise económica, mais duro o programa de austeridade.

Este segundo nível, mais político que técnico, tem uma forte conotação disciplinar. Os países que são confiáveis perdem a sua autonomia – políticas discricionárias não são permitidas de qualquer modo. A dívida é agora parcialmente garantida – através do apoio intraestados e pela intervenção do BCE – mas só em troca de uma maior limitação da soberania. Os países em falta (entenda-se perdedores de competitividade externa) têm que “pagar as consequências das suas acções”, pois não existem mecanismos de solidariedade; os países que questionarem as normas são ameaçados – não terão mais o apoio financeiro de quaisquer instituições europeias, e enfrentam mesmo a possível expulsão “voluntária” da zona do euro.

Pode não se gostar ou pode não se acreditar que este caminho tenha futuro na construção europeia. Mas a austeridade e controlo político são necessários para restabelecer a credibilidade e a autoridade desta União Europeia. “Punir a Grécia” foi, então, a acção disciplinar para castigar o comportamento daqueles que colocaram em risco os alicerces desta construção europeia.