Alemanha acaba com privatizações e avança com remunicipalização de serviços estratégicos

Desde os anos noventa, com o colapso do keynesianismo e a falência dos Estados por causa da estagflação, que o neomonetarismo iniciou a era de ouro das privatizações. Mas neste momento na Alemanha o que é verdadeiro é exactamente o oposto: o número de empresas estatais está a aumentar e as autoridades locais muitas vezes fazem nacionalizações irreversíveis. Em Portugal, os alemães da Network Economy estão a propor às autarquias um novo modelo de negócio, que permite recuperar empregos nos sectores da energia, água e resíduos sólidos para cada um dos municípios, em vez da sua concentração, que tem servido apenas para aumentar o endividamento bancário. Em Portugal como na Alemanha foi travada a venda dos caminhos-de-ferro estatais. Porquê?

As negociações com a Grécia falharam até o país aceitar vender terras e activos até 50 mil milhões de euros. Foi uma insistência do ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble (CDU). Porém, ele mantém na Alemanha as suas participações estatais. Depois de uma onda de privatizações nos anos noventa até ao início dos anos 2000, a tendência agora está de volta na direcção oposta, como uma visão geral do desenvolvimento nos últimos anos mostra. O Governo Federal aumentou o número dos seus investimentos, mas também nas comunidades onde está de volta a renacionalização do sector da energia.

Os anos noventa foram a década de privatizações. Na Alemanha Oriental, o Treuhandanstalt foi fundado apenas com a finalidade de transferir as empresas estatais para mãos privadas. Além disso, na antiga Alemanha Ocidental, a partir do jornal oficial Federal, foram criadas as novas sociedades anónimas, a Telekom, a Deutsche Post e o Postbank , que foram sendo privatizadas gradualmente. Na Telekom, o Governo Federal detém ainda 17,1% hoje, directa e indirectamente 14,5%, através do Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW). O Postbank está totalmente privatizado. Também com o objectivo de que o Estado se retirará em algum momento, o alemão Bahn AG surgiu na década de noventa.

Caminho copiado seguiu Portugal desde Cavaco Silva e sobretudo com os governos do PS e com Passos Coelho: os CTT deram origem à Portugal Telecom, que foi privatizada a benefício do Grupo Espírito Santo. Os CTT foram já privatizados por imposição da Troika, tendo um núcleo de fundos americanos e europeus garantido a estratégia da Rafael Mora/Miguel Relvas, que passa por manter a administração de Francisco Lacerda e que conseguiu do Governo a licença para o Banco Postal.

O mesmo aconteceu com a Galp, que foi dividida por privados nos anos 90 e depois cedida, por Pina Moura e António Guterres (no período em que a corrupção tomou conta da política nacional), a interesses italianos da ENI (controlada na altura por ex-comunistas), e que finalmente veio a ficar nas mãos de Américo Amorim e de investidores angolanos. Portugal privatizou ainda a fileira do papel (Portucel e Soporcel), que deu origem ao grupo Queirós Pereira, a indústria naval (Setenave e Lisnave) e a Quimigal, que deu origem ao novo grupo José de Mello, a Compal (onde assentou o grupo Jorge de Mello), entretanto vendida ao grupo Sumol, a EDP, actualmente controlada por interesses chineses e fundos americanos, e os transportes rodoviários, que beneficiaram o novo grupo Pedrosa. As privatizações bancárias beneficiaram grupos em falência e anteciparam a concentração feita pelo Santander, BCP e BES. À excepção dos espanhóis, os bancos nacionais estão em situação de pré-falência. O Novo Banco a necessitar de um aumento de capital de mais de 1,8 mil milhões e o BCP à beira do colapso e sem solução à vista, depois de falhada a fusão com o BPI, mais uma vez.

Os últimos processos de privatização, como a TAP, EGF ou mercado abastecedor, ainda correm os seus trâmites. A privatização das Águas de Portugal está ainda na mira do CDS, que nomeou Luís Nobre Guedes, amigo de Paulo Portas e sócio no “Independente”, para presidente da empresa.

 

A crise financeira mudou objectivos de política pública

Dois motivos estão sempre por detrás de uma privatização: os primeiros são considerações regulatórias e os segundos são interesses orçamentais.

Na Alemanha, após o colapso do sistema económico comunista, dominou a percepção de que o Estado é incompetente. O Governo Federal conservador-liberal alienou as acções das empresas públicas por convicção ideológica. O Governo SPD-verde usou, por seu lado, as privatizações para tapar buracos no orçamento. Foi nesta linha que, depois dos anos noventa, também se privatizou em Portugal. Sempre para reduzir dívida, mas PS e PSD sempre privatizaram por causa das comissões dos bancos e eventualmente por causa do financiamento dos partidos políticos e de alguns ministros, mais do que por razões orçamentais. Verdadeiramente privatizações por razões orçamentais foram apenas feitas nos governos de Durão Barroso e de Passos Coelho, embora também neles exista forte suspeita de corrupção.

Com a crise financeira, o quadro mudou. O Governo Federal alemão, por exemplo, teve que absorver bancos para evitar a sua falência. A nacionalização do Deutsche Bahn é uma memória distante, embora Schäuble tenha feito o discurso ideológico: “Na economia social de mercado deve ser reduzido o interesse do Estado em empresas, por razões regulamentares, a um mínimo.” O relatório anual alemão deste ano sobre o SEE lista 107 investimentos directos e 549 participações significativas. Em 2007 eram cerca de 150 explorações a menos. O aumento é, sem dúvida, expressão do que a grande coligação quer em termos de nacionalização da economia. A nacionalização deixou de ser um instrumento ideológico para passar a ser um instrumento de política pública, que mesmo os governos liberais usam durante uma crise. Por exemplo, a maioria dos investimentos são subsidiárias do Deutsche Bahn, que se posiciona internacionalmente. Somente 91 dos investimentos foram contabilizados pela companhia ferroviária britânica Arriva, que foi adquirida em 2010. Há também outras empresas ferroviárias e rodoviárias no país e no exterior.

Em Portugal, apenas o BPN foi nacionalizado por José Sócrates, mas já foi privatizado, tendo apenas sido contabilizados cerca de 6 mil milhões de prejuízos. A intervenção na banca feita pelo Estado tem sido progressivamente libertada em função do domínio angolano e chinês (ambos de entrepostos agentes de Governos, pelo que verdadeiramente se trata de uma nacionalização a favor de Governos estrangeiros).

As grandes privatizações feitas com a colaboração de Miguel Relvas/Jorge Coelho deram um privilégio à Mota e Companhia, nos casos das pontes sobre o Tejo, Estaleiros Navais de Viana do Castelo e EGF.

 

Indústria da energia com interesse para os municípios

Além dos caminhos-de-ferro e do resto das acções da Telekom e dos Correios, o potencial de privatização foi em grande parte esgotado nas últimas décadas. Ao longo dos anos, o Governo Federal vendeu a maioria das suas propriedades imobiliárias. Apenas há alguns dias, Schäuble vendeu mais de 75% em Deutsche Pfandbriefbank, um desdobramento da Hypo Real Estate, através de um IPO. Através do SoFFin Bund – Fundo de Estabilização do Mercado Financeiro – ainda detém 17,15% do Commerzbank e participações nos aeroportos de Colónia/Bona (quase 31%), Munique (26%) e Berlim/Brandeburgo (26%).

No caso português, ainda sobram os caminhos-de-ferro, as Águas de Portugal, os transportes fluviais e a Caixa Geral de Depósitos, para além de um número enorme de empresas e fundações estatais ligadas a ministérios.

Mas a onda de privatização está a parar. A tendência é para a remunicipalização pelo menos num sector: o sector da energia. As redes de electricidade são novamente exploradas por empresas locais na Alemanha. Em outras áreas – por exemplo, o abastecimento de água, do transporte e resíduos – ainda não há uma tendência global. O desenvolvimento no sentido de dar mais responsabilidades à iniciativa privada parece, pois, actualmente concluído nestas indústrias.

É isso mesmo que os alemães da Network Economy vêm apresentando a vários municípios em Portugal, depois do sucesso conseguido na Alemanha: a tendência é para fixar empregos em cada município e reduzir os preços, em vez de pagar a água ou a energia a nível nacional. É uma condição para o aumento da competitividade das cidades e dos municípios, estando estes do lado das populações e contra os interesses centralizadores e negócios dos governos centrais.

 

Privatização não leva automaticamente a melhores resultados

Quão forte é o efeito no mercado de energia alemão, mostram dados da Associação de Empresas Municipais (VKU). Desde 2007, 234 municípios têm concessões de redes de electricidade e de gás, que anteriormente estavam em mãos privadas, e que foram nacionalizadas. A lista vai desde Aitern, município em Baden-Württemberg , até Wustermark Brandeburgo. Não menos impressionante é a lista de 141 empresas de utilidade pública que foram reestabelecidas/recriadas desde 2005, para produzir electricidade para si ou para vender. No entanto, não é de excluir que os valores reais sejam ainda mais elevados. Nem as aquisições de concessão de municípios, nem a empresa de startups da cidade, estão registadas centralmente. O número de empregados nas empresas municipais alemãs, que são membros de VKU, de acordo com dados da Associação 2011-2014, aumentou cerca de 10 mil a 245 mil mais.

A remunicipalização do sector da energia tem várias razões. De acordo com um estudo realizado relativo aos anos de 2010 a 2015, estas concessões municipais representam já mais de metade do poder eléctrico na Alemanha. “Tem sido notado que as privatizações nem sempre levaram a melhores resultados. Alguns municípios, portanto, querem-se desfazer, a fim de recuperar mais influência sobre as decisões.” Além disso, as empresas do sector da energia estão muitas vezes amarradas a rendas garantidas, como acontece com a EDP em Portugal, o que faz com que o custo pago pelas populações seja muito superior ao custo real da produção. Bruxelas tem insistido para que Portugal acabe com as rendas da EDP, mas a eléctrica contratou Eduardo Catroga, Luís Campos e Cunha e políticos do PS e do CDS para garantir que tudo se mantenha. Bruxelas admite mesmo avançar unilateralmente no caso português, claramente o mais escandaloso da UE.

Por outro lado, as empresas municipais de energia também podem ser uma fonte de rendimento para os municípios, o que permite baixar os impostos ou então, por exemplo, também beneficia o transporte público eléctrico local (o metro de superfície, por exemplo), cuja decisão de implementação deve ser baseada em critérios económicos sólidos.

 

Remunicipalização fora do programa do PS e do PSD

O CONFIDENCIAL analisou os programas eleitorais da Coligação e do Partido Socialista e verificou que, tal como na economia digital e na economia de partilha, os políticos portugueses estão pelo menos uma década atrasados sobre as tendências das políticas públicas nos países mais desenvolvidos, demonstrando o efeito da pouca preparação dos quadros do ISCTE que apoiam o PS e a nula preparação estratégica das equipas convidadas por Paulo Portas e Passos Coelho para elaborarem o programa da Coligação.

Os termos da regulação da economia partilhada (que o CONFIDENCIAL tratou na semana passada) e da remunicipalização da produção de electricidade, das empresas das águas (tratamento e distribuição) e dos resíduos sólidos podem, porém, vir a marcar o próximo ciclo das eleições municipais em Portugal, permitindo aos municípios encarar políticas amigas dos consumidores e que incluam uma diferenciação positiva a favor dos mais pobres e de taxas favoráveis para os que mais necessitem, sem terem de pagar os encargos colossais dos financeiros e fundos estrangeiros que controlam as empresas vendidas nas privatizações. Por outro lado, as privatizações não têm sido uma panaceia: tornar privados serviços e indústrias a partir de monopólios públicos é geralmente pior, como se verificou no sector bancário. Por outro lado, obrigar os incumbentes privatizados a terem a concorrência das empresas municipais será certamente melhor para evitar a captura dos governos e dos reguladores, sempre tão corruptíveis em mercados pequenos como o português…