Além da reversão das privatizações na área dos transportes, resíduos sólidos e águas e da colocação de novos quadros na Administração Pública, recuperando assim o protagonismo da CGTP, o maior objectivo do apoio do PCP ao governo de esquerda de António Costa passa pela recolocação em cima da mesa da questão da unicidade sindical.
Recorde-se que o Decreto-Lei n.º 215/75, de 30 de Abril, reconheceu a Intersindical como a “confederação geral dos sindicatos portugueses”. A discussão em torno da questão sindical colocará em evidência dois pólos, os defensores da “unicidade sindical”, ou seja, a aglomeração de todas as estruturas sindicais em torno da CGTP, posição defendida pelo PCP, e os defensores da “unidade sindical”, que se traduz na luta comum de diversas “centrais sociais”, posição defendida pelo PS. Esta questão fora determinante para um gradual afastamento entre as direcções do PS e do PCP, aspecto essencial para o desenvolvimento do Processo Revolucionário em Curso (PREC), em 1974-75. Ao retomar o governo com o PS, o PCP voltou a colocar na agenda o tema, admitindo António Costa disponibilidade para o discutir. O Regime está definitivamente em transição.
Movimento sindical e a questão da unicidade
Uma das lutas políticas mais importantes para a definição do tipo de regime e pelo poder em Portugal após o 25 de Abril travou-se entre o Partido Socialista e o Partido Comunista Português a propósito da lei da unicidade sindical. O Partido Socialista, na altura liderado por Mário Soares e Salgado Zenha, opôs-se à tentativa do PCP de implantar em Portugal a unicidade sindical, em oposição à unidade sindical, em que diferentes centrais sindicais se unem para lutar por um objectivo comum.
A unicidade defendida pelo PCP impunha que os sindicatos existentes se unissem numa frente unitária, que seria liderada pela CGTP, formada imediatamente após a Revolução de Abril de 1974, a partir da Intersindical Nacional, e que dominava o mundo sindical.
A luta política e doutrinária à volta da “unidade sindical” versus “unicidade sindical” constituiu um dos momentos históricos mais agudos do combate político travado durante o PREC.
Um exemplo disso foram as comemorações do 1.º de Maio de 1975. Ao contrário do que ocorrera um ano antes, em que a harmonia fora dominante, permitindo consagrar o triunfo dos Capitães de Abril, as celebrações de 1975 decorreram sob o signo da discórdia. Os incidentes tiveram como palco a cidade de Lisboa, deixando patente o fosso que se cavara entre o PCP e PS. O sonho unitário, imortalizado um ano antes, com o abraço de Soares e Cunhal, desfazia-se definitivamente.
É difícil apurar com precisão a sequência de acontecimentos ou as causas imediatas que levaram ao confronto físico e verbal nas celebrações do 1.º de Maio de 1975. As denúncias e acusações formalizaram-se numa verdadeira “guerra de comunicados”. Dizendo-se ostracizado desde os primeiros encontros preparatórios do evento, o PS denunciou a violência exercida sobre os seus filiados, que se viram obrigados a abandonar o Estádio 1.º de Maio no meio de apupos, vaias e sem ter tido acesso à tribuna, onde deveriam ter feito uso da palavra. Interpretando estes incidentes como fazendo parte de uma campanha mais vasta, tendo em vista a minimização da sua vitória eleitoral, o PS regressou novamente às ruas de Lisboa, no dia 2, promovendo uma gigantesca manifestação de protesto.
Diversa foi a versão dos acontecimentos apresentada pela Intersindical, MES, PCP, MDP/CDE e FSP, segundo a qual, mais do que vítima, o PS devia ser considerado o fomentador dos incidentes. Na sua perspectiva, o objectivo do PS era promover acções de desacato para descredibilizar as comemorações e as organizações nelas envolvidas.
Desde o início do ano, os problemas sindicais tenderam a sobrepor-se aos restantes. As discussões e polémicas em torno desta questão radicalizaram-se à medida que se aproximava a tomada de posição do MFA. Este começou por apoiar a unicidade sindical. No início desta disputa eram poucos, do ponto de vista sindical e político, os que expressavam opinião contrária. Apenas o PS era decididamente contra, acompanhado por pequenas formações partidárias da extrema-esquerda maoísta. Eles insurgiam-se contra a possibilidade de a unidade/unicidade vir a ser imposta por lei.
No auge da questão, a Comissão Coordenadora do Programa do MFA, em comunicado lido na televisão pelo capitão Vasco Lourenço, a 13 de Janeiro de 1975, tomou posição “em torno da lei sindical” e pronunciou-se, “por unanimidade, pelo princípio da unicidade sindical”.
Por seu turno, o PS, não estando disposto a ceder, marcou um comício para o dia 16 de Janeiro, a favor da liberdade sindical. O PS investiu toda a sua força política e capacidade mobilizadora “na rejeição do projecto de lei”, organizando comícios e multiplicando declarações em que prognosticava “trágicas consequências” para o caso da aprovação da lei sindical.
A publicação da lei ficaria ainda retida por várias razões, nomeadamente a ocorrência do 11 de Março, acabando por ser o Conselho da Revolução, na véspera do 1.º de Maio de 1975, a decretá-la na sua redacção definitiva.
Em Setembro do ano passado, “O Militante” do PCP publica um extenso trabalho de Américo Nunes sobre a Unicidade – aspiração histórica do movimento sindical. Nele diz-se que “a questão da unicidade sindical não surgiu por mero acaso na Revolução do 25 de Abril de 1974. Unicidade, qualidade do que é único. Sindicato único, central única, foram desde sempre um objectivo no movimento sindical português. ‘Proletários de todos os países, uni-vos!’ (1848). No Congresso das Associações de Classe de 1894 já se rejeitava a constituição de sindicatos que significassem desdobramento de outros. Todavia, a existência de uma central sindical única em Portugal apenas foi conseguida por duas vezes, em períodos históricos fugazes. Durante a 1.ª República, entre 1914 e 1930, com a União Operária Nacional/Confederação Geral dos Trabalhadores (UON/CGT), e entre 1970 e 1979, com a Intersindical/CGTP”.
“Para os militantes sindicais comunistas o caminho de formação da última central sindical única foi traçado na década de 1940, durante a luta antifascista, quando este tipo de organização era proibido. Enraizou-se na orientação do PCP, para que os militantes entrassem para os sindicatos fascistas, onde estavam os trabalhadores, e lutassem para transformá-los em organismos de defesa dos trabalhadores. Na sua concretização foi obtida uma grande vitória em 1945, com a conquista de cerca de 50 direcções nos ‘Sindicatos Nacionais’. No IV Congresso do Partido, em 1946, O Caminho Para o Derrubamento do Fascismo, a orientação dá um salto qualitativo na organização da Frente Sindical do Partido, no plano ilegal, na orientação para o trabalho unitário legal, e em objectivos organizativos mais ambiciosos.”
Para o PCP, “se o movimento sindical se tivesse logo dividido, ou se tivesse lançado numa discussão generalizada em torno de concepções sindicais e de uma reestruturação profunda e absorvente, não teria participado de forma tão determinante nas tarefas imediatas que se colocavam às forças democráticas e revolucionárias após o 25 de Abril: sanear o aparelho fascista, aprofundar a Revolução, consolidar a democracia e melhorar as condições de vida dos trabalhadores e do povo”.
“Mas para (…) o PS e restantes partidos à sua direita tinham de quebrar a grande força unida dos trabalhadores. Tinham de os dividir. E para os poderem dividir mais rapidamente tinham de combater a unicidade.”
“Esta foi a razão fundamental que acabou por transformar a questão da unicidade numa grande batalha política durante os últimos meses de 1974 e o primeiro semestre de 1975”, conclui o articulista do PCP.
Unicidade e unidade
Segundo o artigo de “O Militante”, “até 1977, mesmo quando já era claro para toda a gente que o PS, PSD e CDS se encaminhavam para a constituição da UGT – apoiados pela Internacional Socialista, CISL, sindicatos norte-americanos, dirigentes políticos e sindicalistas envolvidos no projecto da central paralela , estes partidos continuavam a afirmar que queriam a unidade sindical, a central única. Esta duplicidade derivava do facto de não ser fácil ir contra o sentimento de unidade dos trabalhadores e tinha também como objectivo alargar o espaço para o divisionismo”.
“A Constituição de 1976 ainda enfatiza a importância da unidade dos trabalhadores, não consagra a unicidade, mas também não a proíbe. Diga-se de passagem que a própria lei sindical, tão contestada por supostamente obrigar à unicidade, não a consagrava de facto. A lei tinha algumas regras que não facilitavam a constituição de sindicatos paralelos, mas permitia a sua constituição mediante determinado quorum. Também permitia a constituição de federações e uniões sindicais, desde que por sindicatos que representassem 1/3 dos trabalhadores, e mesmo outra central sindical, desde que tivesse 50% de representatividade. É o próprio redactor final dos decretos 215-A/75 e 215-B/75, Dr. Almeida Santos, quem o diz nas suas ‘Memórias’, ao mesmo tempo que afirma que o estabelecimento de um quorum era outra forma de proibição da unicidade.
No PCP havia também aqueles para quem a rejeição da unicidade era ‘gato escondido com o rabo de fora’. Para eles, o PS só queria a central única se fosse hegemónico na sua direcção. Como percebeu que isso não era possível, dada a influência do PCP, o PS assumiu a liderança do combate à unicidade.”
“A proposta de lei sindical, em cuja elaboração participaram dirigentes da Intersindical, começou a ser elaborada por uma comissão constituída para o efeito, no Ministério do Trabalho, pouco depois do 25 de Abril. Foi provavelmente a lei que até hoje teve maior participação dos trabalhadores na sua discussão e elaboração.”
“Para além da participação através de dirigentes da Inter e de diversos sindicatos, cujas propostas foram realmente tidas em conta pelo Ministério do Trabalho, centenas de milhares de trabalhadores discutiram, propuseram, votaram e manifestaram-se durante a discussão pública da lei. Tão grande participação contribuiu seguramente para que a Constituição viesse a consagrar a obrigatoriedade da discussão pública das leis laborais antes de serem aprovadas.”
“No âmbito desta discussão pública”, diz Américo Nunes, em “O Militante”, “a Intersindical esclarece: ‘O problema do pluralismo não se punha nem se pôs nunca por iniciativa dos trabalhadores. Como de igual modo não se pôs o problema da unicidade. A questão é que forças estranhas aos trabalhadores, procurando dividi-los, difundiram o princípio do pluralismo da organização. Ora, foi face a essas tentativas de divisão que a Intersindical pôs o problema da consagração legal da unicidade.’ E numa perspectiva de classe: ‘Alguns defendem o pluralismo sindical por semelhança com o pluralismo político. Trata-se de uma farsa ou de uma confusão. O pluripartidarismo tem como justificação, exactamente, a existência de classes sociais. Muito diferentemente, ao movimento sindical, porque é próprio de uma só classe, não corresponde, de modo nenhum, o pluralismo organizacional.’”
Batalha da unicidade – batalha política
Segundo o mesmo articulista, “no dia 2 de Janeiro de 1975, o Conselho dos 20, mais tarde Conselho da Revolução, apoiou por unanimidade as propostas de lei sindical e da lei que reconhece a Intersindical como central sindical única. A 7 de Janeiro, Salgado Zenha, alto dirigente do PS e ministro da Justiça, publica no DN um artigo sob o título ‘Unicidade Sindical ou o Medo da Liberdade’. Nele ataca a unicidade e defende o pluralismo sindical, na base de argumentos jurídicos facilmente desmontados por Gomes Canotilho, e de conceitos abstractos de liberdade e de democracia”.
“Carlos Carvalhas, secretário de Estado do Trabalho, também no DN, responde a Zenha com a democracia concreta e a liberdade concreta. ‘A liberdade para mim não é a do peixe grande comer o pequeno. Não basta dizer que cada homem tem direito ao trabalho se no sistema sociopolítico em que se insere há milhões de desempregados. Nada significa apontar o direito à saúde e à cultura e ao ensino, se as camadas mais desfavorecidas são dele afastadas. Essa liberdade, liberdade em abstracto, contra a liberdade real pode ter todas as utilizações e manipulações.’ Carlos Carvalhas contrapõe ainda, à democracia em abstracto, a massiva participação dos trabalhadores, dos partidos e da opinião pública na discussão e tomada de posição sobre a proposta de lei. No dia 14 de Janeiro, mais de 300 mil trabalhadores, convocados pela Intersindical, enchem as ruas de Lisboa em defesa da unicidade. Perante a mole imensa que enchia a Praça de Londres, sob chuva torrencial, Costa Martins, enquanto ministro do Trabalho e membro do Conselho de Revolução, e Carlos Carvalhas, em nome da Intersindical, são ovacionados quando defendem a unicidade. Neste mesmo dia, o PS realiza um comício de contestação à unicidade no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, em que discursam Zenha e Soares.” “Pela primeira vez, desde Abril de 74, o PS afrontava claramente o MFA como ‘aliado objectivo’ do PCP”, diz Mário Soares, citado por Américo Nunes.
“Pouco tempo depois, Sá Carneiro, presidente do PPD, dá uma conferência de imprensa para anunciar que unicidade na lei só através de um plebiscito nacional. Tem raízes aqui a aliança do PS com toda a contra-revolução. Aliança que teve um impulso de ruptura do PS com a Revolução nas provocações urdidas e protagonizadas por Mário Soares no 1.º de Maio de 1975, prosseguindo durante o ‘Verão Quente’, com a exigência de demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. E um primeiro desenlace, de viragem à direita, com o golpe militar do 25 de Novembro. Podendo dizer-se com propriedade que continua ainda hoje no plano político, através do antidemocrático conceito dos partidos do ‘arco do poder’ que governam Portugal há cerca de 40 anos.”
“Dirá depois o próprio Mário Soares: ‘Conversámos muito na altura, almoçámos uma ou duas vezes – sempre no Tavares – e decidimos fazer um pacto: não nos disputarmos no terreno sindical. Deveríamos ambos apoiar, politicamente, a formação da UGT. Foi um compromisso simplicíssimo, uma espécie de acordo de cavalheiros, sem nada escrito, mas onde ambos nos comprometemos nesse apoio. Compreendemos muito bem, Sá Carneiro e eu próprio, que, sem o apoio político do PS e do PSD, não se partiria para a criação de uma central forte, independente, capaz de fazer um contraponto sério à Inter.’”
“A partir do VI Governo Provisório, através dos ministros socialistas, mas sobretudo após o I Governo Constitucional, a partir do poder político, foram tomadas medidas e criados instrumentos para ‘partir a espinha à Intersindical’, segundo a formulação de Maldonado Gonelha”, refere Américo Nunes. E, ao mesmo tempo, favorecer o aparecimento da central combinada por Soares e Sá Carneiro no restaurante Tavares. Foi proibido o desconto da quotização sindical através dos recibos dos salários; foi aprovada a lei dos contratos a prazo a fim de precarizar o emprego; foram revogados os artigos da lei sindical que estabeleciam os quoruns para a constituição de associações sindicais; foi criado o movimento Carta Aberta, ao qual foi concedido politicamente o estatuto de parceiro social; foram saneados elementos de instituições representantes da Intersindical e substituídos pelos da Carta Aberta; vieram milhões de contos do estrangeiro para apoiar o divisionismo.
Mas o projecto, institucionalizado com a criação da UGT no final de 1978, garantiria a criação de uma “central sindical” que pudesse subscrever o diálogo social que o actual debate presidencial tanto pretende assegurar, como tarefa fundamental do próximo Presidente da República.
Destruir a UGT definitivamente
O projecto de reconstrução do poder da Intersindical passa agora pela renegociação com o PS dos termos da extinção definitiva da UGT, uma estrutura sindical particularmente dependente dos bancários e dos grupos financeiros nascidos das reprivatizações e enfraquecida com a renacionalização da banca.
É neste contexto que o PCP quer agora recolocar o problema a António Costa, tendo o primeiro-ministro aceitado discutir o tema com o PCP, ao que o CONFIDENCIAL apurou.