A radicalização do discurso de Passos Coelho na queda do Governo PSD-CDS e a colagem à extrema-direita parlamentar, mantendo a coligação de direita para uma eventual oposição sistemática a um eventual governo de esquerda, é considerada, em Belém, como mimética da estratégia de sobrevivência de António Costa com a solução de acordos com a esquerda para derrubar o governo da coligação minoritária na Assembleia da República. Só que Passos, ao ficar colado a Paulo Portas, inviabiliza o Bloco Central entre o PS e o PSD.
Na última legislatura a coligação liderada por Passos Coelho adoptou uma postura de direita pró-continental (germanófila), afastando-se da social-democracia tradicional do PSD e alienando a tradição sá-carneirista e cavaquista do PSD da Terceira República. Esta radicalização libertária era ainda sinal dos tempos, a marcar a irrelevância da França no contexto europeu e a supremacia dos discursos austeritários no FMI e numa Europa germanizada.
A queda de influência de Merkel no seu próprio espaço político, devido à questão dos refugiados, mas sobretudo o entendimento americano de que é possível integrar a extrema-esquerda num projecto europeísta reformado – aliás, na linha das propostas de David Cameron –, abriram espaço para a construção política de soluções que seriam impossíveis ainda há meses.
Contudo, os resultados das eleições de 4 de Outubro foram lidos nos EUA e sobretudo na Europa como um convite a que PSD e socialistas se unissem para formar um Bloco Central. Foi, aliás, esta a indicação dada pelo Presidente da República no primeiro discurso ao país depois das eleições gerais.
Sobrevivência de António Costa
Derrotado nas legislativas e ameaçado no lugar de secretário-geral do PS, António Costa mostrou a habilidade para forjar um entendimento que, para já, lhe deu mais um ou dois meses de vida política e lhe garantiu ser o principal “player” da queda do XX Governo Constitucional.
Os entendimentos do PS com o PEV, o PCP e o BE foram o mínimo necessário para darem consistência a uma unidade aparentemente positiva para derrubarem o governo da Coligação PàF. Sem estes acordos, por insuficientes que sejam para cumprirem as exigências do Presidente da República, a aprovação da moção de rejeição do PS ao programa do segundo governo de Passos Coelho pareceria uma mera coligação negativa altamente penalizadora do próprio António Costa.
Neste contexto e até para se formar uma terceira via, era necessário o derrube do governo de direita. E neste contexto, havia que garantir a estabilidade interna do PS – nomeadamente assegurando que nem Assis nem Beleza romperiam o grupo parlamentar – e, por outro lado, um acordo mínimo que desse credibilidade estratégica.
Até aqui, Belém, à distância, foi mandando os seus recados e tudo correu como o previsto.
Portas é o único ganhador
O que Belém não contava é que Passos Coelho radicalizasse o discurso à direita e mantivesse a aliança com Portas, mesmo depois da queda do governo. O ar triunfante de Paulo Portas na Assembleia da República pretendeu passar a mensagem – aliás, com sucesso – de que o PSD e Passos Coelho estavam capturados por Paulo Portas e que ele era o único vencedor deste jogo: ao puxar o PSD para a direita, obrigou António Costa a ir para a esquerda, desertificando o centro político, onde sempre se governou na Terceira República e criando uma bipolarização perfeita, o sonho do CDS direitista que, com António Costa e neste ciclo político, nunca seria um partido de charneira, mas de interesses e valores extremistas e conservadores.
Passos capturado pelo CDS e Costa ostracizado com os entendimentos com a extrema-esquerda eurocéptica eram o cenário perfeito para o ajuste de contas final de Paulo Portas com o Presidente da República.
A publicação do livro de dois jornalistas, Liliana Valente (do “Observador”) e Filipe Santos Costa (do “Expresso”), “O Independente – A Máquina de Triturar Políticos”, esta semana, estava aí, nas pré-publicações, a lembrar o projecto de Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso, apoiado à distância por Marcelo Rebelo de Sousa, contra o cavaquismo e o governo social-democrata, levemente keynesiano, inspirado por Jacques Delors, constituído por Cavaco Silva e que dominou a política nacional nos anos oitenta e noventa.
Mas a máquina ideológica de Portas estava aí para consagrar o seu triunfo – com o de Marcelo Rebelo de Sousa –, ainda por cima pago por Basílio Horta (ex-CDS e hoje à frente de uma CM socialista em Sintra), do Museu das Notícias, onde em 900 metros quadrados há espaço para os jornalistas que foram notícia e onde as grandes vedetas são Portas e Marcelo, numa distorção histórica do jornalismo, que apenas obedece a cânones ideológicos, assumidos por um grupo de comunicação empresarial sem nenhum conteúdo científico, ou mesmo preparação histórico-cultural.
Dois instrumentos ideológicos de consagração de uma vitória de direita, tipicamente superficiais, sem verdade científica, mas servindo os interesses de quem os encomendou, aliás, como foi toda a abordagem de combate do “Independente”, seriam a medalha que Portas ainda não recebeu de Cavaco Silva, a proclamação de um Marcelo Rebelo de Sousa, dado pela escola “Independente”, como eleito antes mesmo de começar a pré-campanha.
A desforra de Cavaco
Este ajuste de contas com o Presidente da República tem agora o seu último momento. Belém sabe que Paulo Portas vive de negócios e de aparências. E que ainda que tenha passado a mensagem de que capturou o PSD e Passos Coelho, o primeiro-ministro ainda tem espaço de manobra. Por isso, a primeira abordagem de Belém será sempre pedir a Passos Coelho que abandone o CDS e crie pontes com o PS, ao mesmo tempo que pedirá a Costa que abandone o PCP e o BE e se coligue num Bloco Central com o PSD. Trata-se da solução que, mais tarde ou mais cedo, vai existir, se sobreviver o actual sistema de partidos, dirá Belém, para além de ser a única estratégia que garante a prazo a sobrevivência política do próprio António Costa, pois, estando no governo com Passos Coelho, dificilmente será desalojado do partido (muito embora Francisco Assis fique com legitimidade para acusar o ziguezague táctico de Costa!).
Uma abordagem destas seria a desforra de Cavaco Silva: deixaria de fora Paulo Portas que, num mês, perderia o controlo do Partido CDS e certamente emigraria para Itália, onde terá interesses imobiliários, para não ser apedrejado na praça pública, com eventuais processos, aparentemente parados no Ministério Público, como encomendas militares, por exemplo.
Seria a desforra pelo “Independente”, pelo culto de personalidade pago por Basílio Horta no futuro Museu das Notícias, e sobretudo uma boa solução para a manutenção do quadro partidário actual e o respeito pela vontade maioritária dos cidadãos que votaram em 4 de Outubro de 2015.
A estratégia de Passos Coelho: dar uma lição aos portugueses!
Só que, só por engano, é que se pode dizer que Passos Coelho foi capturado por Paulo Portas e pelo seu fascínio mediático. Bem pelo contrário, apesar do súbito entendimento perfeito entre os dois líderes da Coligação, na campanha eleitoral e na formação do XX Governo Constitucional, Passos Coelho é exactamente como António Costa, um político realista, que tem a sua agenda e não se deixará manipular por Belém nem pelo colega de coligação.
Passos Coelho usou o discurso libertário como solução para os problemas do País, porque essa era a agenda europeia que o apoiaria no poder. A sua estratégia foi, desde o início, a criação de um bloco de centro-direita em que ele fosse a figura dominante, com o CDS à direita e um PS à esquerda, ficando o PSD a charneira e liderança desta Grande União, obrigando os partidos fora do arco da governação a ficarem de fora. Era uma estratégia de mexicanização do regime, em que o PS não alinhou, porque a prazo reduziria o PS a um partido satélite do PSD (como é o CDS), transferindo o centro da vida política para a esquerda do PS e permitindo o crescimento a partidos radicais como o BE.
Não estando o PS disponível para esta solução, Passos Coelho prefere sair do governo e esperar que o vão buscar a casa, como fez Salazar quando os militares não quiseram as suas condições de governo. Ao radicalizar a direita, Passos inviabilizou o “centrão” de Cavaco Silva e Eanes e muda aparentemente a natureza do próprio regime. Como o Presidente da República sabe que um governo do PS apoiado pelos populistas de esquerda não terá apoio internacional e, sobretudo, prejudicará em poucos meses os ganhos da estabilidade dos últimos anos de Coligação. Para impor uma lição que sirva de vacina, Passos Coelho não se importa de deitar a perder o que foi feito e sabe que rapidamente o PS teria que abandonar o governo, e que provavelmente por muitos anos a direita reconquistaria o poder.
Cavaco irritado com Passos: governo de iniciativa presidencial?
Esta radicalização e insistência do lado do PSD, de que o presidente dê posse a um governo do PS imediatamente e sem perdas de tempo, irrita solenemente Belém, que considerará ser uma irresponsabilidade e sobretudo um exemplo de falta de senso. Prejudicar o país para dar uma lição aos portugueses não está na agenda ética de um Presidente da República que gostaria de terminar o mandato com uma solução política que permitisse as reformas estruturais necessárias para aumentar a competitividade do País e manter o rumo europeu que marcou toda a Terceira República.
Sem saída para o Bloco Central por parte de Passos Coelho, o Presidente da República ponderará quatro cenários:
- A nomeação do governo socialista de António Costa com o apoio da esquerda para a viabilização do programa, mas sem garantia de continuidade (muito pouco provável), com ou sem remédios (no sentido do Presidente da República poder, por exemplo, exigir a inclusão de membros do BE e do PCP no governo ou outras exigências, como fez o presidente Jorge Sampaio a Pedro Santana Lopes). Esta é também a solução desejada por Marcelo Rebelo de Sousa e Manuela Ferreira Leite.
- A manutenção do actual governo em gestão (neste caso o governo teria de apresentar o OE/2016 e ficaria com o desgaste da governação sem ter maioria no parlamento): Passos Coelho já disse não pretender esta solução, que provavelmente daria a vitória a um presidente de esquerda e depois a derrota da coligação nas legislativas antecipadas para Junho de 2016.
- A indicação, com acordo do PS e do PSD, de uma figura consensual, eventualmente um académico ou um ex-funcionário de Bruxelas, para liderar um governo de transição até à realização das eleições. Este Bloco Central de iniciativa presidencial não é do agrado do Presidente da República, que publicamente já o fez saber, mas é uma solução tipicamente eanista e que pode ser mais equilibrada no contexto europeu. As pressões internacionais podem ir nesse sentido e Cavaco Silva pode resolver para já a situação e iniciar depois um combate interno dentro do PSD, para que a tendência social-democrata recupere a liderança do PSD. Uma espécie de movimento reformista dentro do PSD apoiado pelos pais fundadores e que afastaria o “radicalismo libertário” do passismo.
- Fomentaria a partir de Belém a ocupação do espaço político ao centro, criando um novo partido social-democrata e centrista, que disputaria as próximas eleições, como Eanes fez com o PRD, que ajudou a desbloquear o regime político. Esta solução poderia levar à fragmentação do PSD, como aconteceu em Espanha com a área do PSOE, ou, em França e Itália, com a área do centro-direita, o que a prazo acabou por ser um expediente que entregou o poder à esquerda.
Cavaco Silva vai decidir nos próximos dias, depois de ouvir na próxima semana de novo os partidos políticos. Vai ainda tentar convencer Passos e Costa para que avancem para um governo de Bloco Central, ou indiquem por consenso uma figura para primeiro-ministro, garantindo a unidade do PSD e do PS e a preservação do actual sistema de partidos. É talvez a última batalha do velho presidente, a dois meses de abandonar Belém, depois de uma longa e prudente carreira nacional. Conseguirá? Ou o oportunismo de Paulo Portas e o realismo de Passos Coelho e de António Costa imporão a reforma do sistema partidário nacional?