Depois da tomada de posse do novo governo de Passos Coelho, amanhã, a linha que separa as duas posições sobre a reorganização do sistema de partidos em Portugal fica mais clara.
De um lado, António Costa faz saber que tem um acordo quase negociado com a esquerda. O acordo de governo deveria ser assinado numa cerimónia pública entre os três líderes de esquerda, António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Mas essa cerimónia está programada apenas para quando, de facto, o acordo estiver terminado. Por agora, deverão continuar a decorrer as negociações separadas entre o PS e o BE, PCP e PEV.
Por outro lado, a direcção do PS não pretende que as negociações sejam aceleradas, pois não tenciona que os conteúdos exactos deste entendimento venham a público e sejam conhecidos pelo País, antes de o programa de governo da Coligação PSD-CDS ser apresentado para debate parlamentar na Assembleia da República.
Esta posição do PS tem que ver com a tentativa de se organizar o espaço político nacional em dois grandes blocos, numa bipolarização perfeita – solução entendida como necessária para garantir que partidos como Bloco de Esquerda e o PCP possam ser reintegrados no espaço europeu, como foi o Syriza, na Grécia.
Em Portugal esta solução passaria pela liderança do Partido Socialista de António Costa, substituindo-se, desse modo, a uma liderança demasiado próxima do Partido Comunista e, sobretudo, que possam ser favoráveis à desagregação do euro e da União Económica e Monetária, base do projecto europeu e condição para um acordo bem sucedido de mercado transatlântico (TTPI).
O problema desta estratégia – inspiradora do governo de alternativa de esquerda que António Costa tem estado a negociar com o BE, o PEV e o PCP – era a possibilidade de fragmentação do Partido Socialista, nomeadamente a possibilidade das alas identificadas com Francisco Assis e Álvaro Beleza virem a autonomizar-se como um grupo parlamentar autónomo, ou a provocar uma fractura no PS. Mas essa questão ficou resolvida com a radicalização do discurso presidencial de Cavaco Silva, que uniu definitivamente o Partido Socialista e impede qualquer divisão interna, pelo menos enquanto este Presidente da República estiver em Belém.
Com este movimento, Belém assegura que um governo do PS com a esquerda não tem futuro, até porque a instabilidade nasce dentro do próprio PS.
Portanto, a linha geral deste primeiro fio condutor era afinal seguir o movimento da Europa com a criação de um sistema político onde prevaleceriam dois blocos, numa bipolarização perfeita sem áreas de consenso para além da integração europeia. Ou seja, o cimento dos sistemas políticos faz-se a partir de Bruxelas e não das elites locais. É nesse sentido que deve ser visto o que aconteceu com o Syriza na Grécia, mas também com a maioria absoluta da direita, antes anti-europeia e pró-atlantista, na Polónia.
Em Portugal, um governo de esquerda seria mais facilmente controlável a partir de Bruxelas do que entendimentos negociados entre as elites do País, ao centro.
Mas esta é uma abordagem que, em nosso entender, a Europa irá pagar cara. É uma visão externa de quem não conhece a realidade política e histórica da Europa e entende o sistema político como um terreno experimental – vale a pena olhar para os erros das primaveras árabes na Líbia ou no Egipto, ou para a destruição do Iraque e da Síria, onde claramente uma estratégia de experimentação pode acabar em situações descontroladas, com os efeitos colaterais como, por exemplo, as migrações que agora assustam a Europa.
O outro fio condutor parece ter sido o seguido pelo Presidente da República. Belém alinha pelo consenso político fundador do sistema de partidos da Terceira República. E, nesse contexto, obviamente, a preservação do Partido Socialista é crítica para o sistema partidário, ao mesmo tempo que o centro político tem que continuar a estar entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata.
Com estes dois pressupostos é evidente que o Partido Socialista nunca poderia apoiar um governo da Coligação PSD-CDS, nem nunca poderia fazer uma Grande Coligação com os dois partidos à sua direita. Isso significaria o suicídio do PS e, portanto, uma impossibilidade dentro desta linha de orientação seguida por Belém.
Só que Passos Coelho, fiel ao acordo pré-eleitoral com Paulo Portas, aceitou, dois dias depois das eleições, fazer uma coligação de incidência governamental, tornando impossível um entendimento maioritário depois das eleições de 4 de Outubro.
Recebido em Belém pelo Presidente da República, Passos Coelho foi mandatado para encontrar consensos para um governo de legislatura. O Presidente da República podia ter dito logo ao primeiro-ministro que voltasse para casa e desse cabo da coligação com o CDS, pois com ela não ia a lado algum.
Só que se o Presidente da República tivesse tido essa posição, o ónus da inviabilização de um governo da Coligação PSD-CDS ficaria em Belém, numa altura em que o ambiente estava muito crispado pela não demissão de Costa do PS e a sua insistência em sobreviver, criando o seu próprio espaço político e dialogando com a esquerda.
Portanto, fiel à sua estratégia de criar um entendimento entre o PS e o PSD, Belém dá posse amanhã a um governo de Coligação de centro-direita, ficando depois claro que a Coligação PSD-CDS, derrotada no Parlamento com a rejeição do seu programa, não faz mais sentido e se dissolve com a demissão do 2.º Governo de Passos Coelho.
Passou, entretanto, tempo suficiente para consolidar António Costa na liderança do PS e para os socialistas – mesmo os mais radicais sampaístas – interiorizarem que um governo de esquerda apenas serve para dividir o PS e que não dura para além do Verão, abrindo a porta ao regresso da direita com uma maioria absoluta, provavelmente por mais quarenta anos!, ainda por cima legitimada por eleições livres e democráticas e no contexto da União Europeia e da UEM.
Estão, segundo Belém, criadas as condições para o Presidente da República, ouvidos os partidos, convidar de novo Passos Coelho a formar um novo executivo, sem o CDS, mas em coligação, ou com um acordo parlamentar com o PS, ou seja, o regresso ao Bloco Central, única solução para permitir fazer as maldades necessárias para corrigir a trajectória do défice e implementar as medidas estruturais necessárias para colocar o país na rota da convergência com o resto da Europa. É claro que a evolução da política europeia nos próximos dois meses e, em particular, os resultados em Espanha poderão influenciar este acordo e até facilitá-lo, se o PSOE, em vez de se juntar ao Podemos, acabar por fazer também um Bloco Central com o Partido Popular.
Mas, em Portugal, a radicalização da linguagem e da estratégia das últimas semanas pode colocar a questão se António Costa, depois do fracasso da experiência de esquerda, aceita um governo de Bloco Central liderado por Passos Coelho, ou se vai querer exigir mudanças no PSD. António Costa não tem legitimidade nem votos para isso, mas tacticamente está numa situação em que pode ter espaço para negociar e forçar mudanças no adversário, antes de se coligar com ele. Mesmo que não consiga afastar Passos Coelho da liderança do PSD – o que parece mais que provável – pode exigir e ter sucesso na escolha de um outro candidato a primeiro-ministro. Não seria propriamente um governo de iniciativa presidencial, mas uma coligação de Bloco Central para uma legislatura em que eventualmente os líderes dos dois partidos ficavam de fora.
Mas esta solução é de tal modo frágil, que um governo com os líderes dos dois partidos de fora não só ficará com o ónus de ser uma solução presidencial ou de iniciativa presidencial (mesmo sem o ter sido), como certamente deverá cair ainda na primeira metade da legislatura, por muito grave que seja a situação do País e por enormes que sejam as pressões de Bruxelas e dos governos dos Estados-membros da UE.
Para Belém, neste momento, é indiferente que o Bloco Central se faça com ou sem Passos Coelho, antes ou depois de Cavaco Silva sair de Belém, antes ou depois de eleições e de um longo governo ou de sucessivos governos em gestão – o que importa é a governação do País e que tudo fique na mesma no sistema partidário nacional.
Mas este cenário pode ainda complicar-se: do lado do PSD, Passos Coelho pode não se sujeitar as exigências de Belém antes do novo Presidente da República tomar posse. A degradação das relações entre Costa e Passos, depois de se ter tornado óbvio que o PS estava empenhado em provar a viabilidade ou a inviabilidade de um governo de esquerda, pode levar o PSD a forçar o avanço de um governo de esquerda, que não duraria pela sua própria dinâmica interna (nomeadamente a contestação dentro do PS) para além do Verão. Neste cenário o PSD acreditaria que seria possível voltar ao governo com uma maioria absoluta e que o PS e a esquerda dificilmente voltariam ao poder nesta República. Querendo ser criativo num cenário destes, a própria fusão entre o CDS e o PSD poderia estar em cima da mesa depois de novas eleições legislativas.
Mas Belém preferirá, diante do endurecer de posições da direita, certamente manter em gestão o 2.º governo de Passos Coelho ou outro de iniciativa presidencial, como aliás aconteceu em 1982, com o Governo de Francisco Pinto Balsemão (VIII Governo Constitucional e 2.º Governo da AD), que antecedeu o Bloco Central nas eleições gerais de Junho de 1983. Durante esse governo de gestão foi possível aprovar um Orçamento do Estado para o ano em curso (1983), conforme exigência do então Presidente da República Ramalho Eanes. O novo governo saído das eleições foi de Bloco Central e celebraria o segundo acordo com o FMI.