A última crise da União Europeia?

Há um clichê reconfortante em Bruxelas: que a União Europeia (UE) necessita de crises para progredir. Mas o cocktail actual de problemas que a Europa enfrenta – os refugiados, o euro e o perigo de a Grã-Bretanha poder deixar a União – está a sobrecarregar a UE, e não a fortalecê-la.

 

Pela primeira vez em décadas, algumas das conquistas fundamentais e princípios da UE estão ameaçados. Entre eles, a moeda única, as fronteiras abertas, a livre circulação de trabalhadores e a noção de que a adesão é para sempre. A estas ideias estruturantes, junta-se uma conjuntura complicada, com recessão em partes da Europa, aparentes “golpes de Estado” na Alemanha, onde Merkel é obrigada pelos bávaros a recuar em matéria de imigração, ou com o crescimento do populismo neofascista e trabalhista em países como a Hungria ou a Grã-Bretanha.

Em vez de crescer com estes desafios, a UE está-se a deteriorar debaixo da tensão. Os seus 28 Estados-membros estão divididos e parecem incapazes de estruturar respostas eficazes aos problemas comuns, como se viu esta semana com o fracasso da iniciativa alemã das quotas de imigrantes, apresentada no Conselho dos Ministros do Interior.

Grande parte da UE continua ainda mergulhada numa semidepressão, com elevadas taxas de desemprego e finanças públicas insustentáveis. Os problemas de uma implosão no Médio Oriente estão a atingir a Europa, sob a forma de centenas de milhares de refugiados. De acordo com o divulgado na terça-feira pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), 464 876 imigrantes e refugiados cruzaram o Mediterrâneo até à data. E as franjas políticas estão em ascensão, e não apenas na Europa de Leste, como o prova a recente eleição de um candidato eurocéptico de extrema-esquerda para liderar o Partido Trabalhista da Grã-Bretanha.

Incapazes de responder à crise, os países da UE estão cada vez mais inclinados a agir unilateralmente, ou mesmo – como no caso da Grã-Bretanha – a deixar o bloco europeu.

A crise de refugiados está a ameaçar ideias estruturantes da UE, como a das fronteiras abertas (Espaço Schengen). Nos últimos dias, a Alemanha restabeleceu os controlos nas fronteiras, num golpe de Estado palaciano, que tirou o poder da chanceler Merkel e o devolveu, em matéria de migração, aos bávaros, do mesmo modo que, em matéria de austeridade e euro, foi o ministro das Finanças Schäuble que acabou por se impor. A Áustria, por sua vez, repôs controlos na sua fronteira com a Hungria, e concluiu, às 23 horas de segunda-feira, o muro de arame farpado para proteger a sua fronteira com a Sérvia, que não pertence à UE. Os controlos também foram reforçados nas fronteiras franco-italiana, enquanto os migrantes acampados miseravelmente em Calais esperam para atravessar o canal e chegar a Inglaterra.

Se a UE conseguir de alguma forma um controlo sobre a crise migratória, essas medidas poderão não passar de expedientes temporários. Mas se a pressão dos pretensos refugiados que se dirigem para a Europa continuar a ser intensa, então as medidas temporárias poderão endurecer e converterem-se em controlos permanentes.

Pontos de interrogação sobre a abertura das fronteiras funcionarão facilmente como sombras sobre questões mais amplas, como o acesso aos sistemas de Segurança Social e os mercados de trabalho. Isto porque os países da UE estão a perceber que, num mercado único sem fronteiras, uma alteração unilateral das regras de asilo pela Alemanha tem implicações para as políticas de imigração de todos os Estados-membros. Isto porque uma vez que os migrantes podem obter a cidadania ou um visto de residência num país da UE, ganham o direito de se deslocar para qualquer outro, para trabalhar e reivindicar benefícios. Mas se a livre circulação de pessoas e de trabalho forem postas em causa, o mesmo acontecerá com o mercado único da UE – a sua concretização principal, o ADN da União.

 

Crise migratória e Parceria de Livre Comércio Interatlântico

A UE está dividida na resposta a uma crise de refugiados em crescimento, e que, até ao fim do ano, representará um movimento de cerca de 1,3 milhões de refugiados (mais ou menos o mesmo que Portugal absorveu em 1975 com a crise dos retornados das ex-colónias), que já resultou em milhares de mortes no Mediterrâneo desde o início do ano.

A questão dos refugiados, neste momento, ofusca a crise do euro e os debates sobre o TTPI, o acordo de Comércio do Atlântico Norte. Mas os problemas do acordo de livre comércio com os EUA e Canadá e da moeda única não desapareceram. Pelo contrário, enquanto o TTPI parece estar a dar aos EUA a prevalência que a Europa tinha em matéria de regulação dos mercados (o que será fatal, nomeadamente para Portugal), a decisão da Grécia de ceder e aceitar mais um pacote de austeridade tornou a zona do euro cada vez mais parecida com uma armadilha.

Mesmo a Grécia, que está mal na zona do euro, não pode correr o risco de sair, por receio de provocar uma crise financeira e económica. Por outro lado, os países credores, como a Alemanha e os Países Baixos, não estão muito mais felizes, pois temem estar a ser arrastados para um sistema de transferências orçamentais permanentes para as nações do Sul da Europa. Enquanto isso, os esforços para melhorar o funcionamento do euro, pressionando adiante com uma união bancária, estão parados em Bruxelas. O que não parece uma situação sustentável e o risco de break-up do euro vai certamente voltar.

À crise dos refugiados e do euro temos ainda que juntar a questão sobre se a Grã-Bretanha vai votar para permanecer na UE, aquando do referendo agendado para 2016 ou 2017. Até agora, as sondagens pareciam promissoras para o campo pró-UE. Mas a crise migrante fez sobressair a questão mais crítica para aqueles que fazem a campanha a favor da saída da Grã-Bretanha: a integração na UE significa que o Reino Unido não pode controlar a imigração. Até porque, numa perspectiva mais ampla, os britânicos são menos propensos a ficar dentro de uma organização que parece estar a falhar em todos os campos. Se eles votarem para sair, a sensação de crise no seio da UE vai ampliar-se, abrindo a possibilidade de novas deserções.

 

Crise da Grã-Bretanha na Europa

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, está sob pressão de todos os lados e enfrenta um desafio delicado na tentativa de renegociar com a UE um acordo equilibrado de permanência do Reino Unido.

A melhor maneira de evitar problemas seria o bloco europeu mostrar a sua relevância e eficácia, provando aos cidadãos da UE que a acção colectiva e a cooperação são as únicas formas de lidar com questões como a crise dos imigrantes.

O problema é que os complexos processos de tomada de decisões da UE tornam extremamente difícil responder rapidamente e de forma coerente a uma crise, como a questão dos imigrantes ilustra.

Recorde-se que um dos temas políticos centrais dos últimos 40 anos tem sido o avanço constante do projecto europeu. É difícil (e alarmante) imaginar tudo o que se perderá se ele falhar agora. Mas a turbulenta história da Europa está repleta de exemplos de impérios, monarquias e alianças que atingiram a grandeza e, em seguida, entraram em colapso. A UE faz-me lembrar a Liga das Nações – uma elite burocrática com elevada preparação, comprometida com a cooperação internacional e o Estado de Direito –, que acabou por ser posta de lado por eventos internacionais com os quais não podia lidar.