A fractura Guterres/Sampaio ainda existe

A vida política interna do Partido Socialista ainda está muito marcada pela fractura interna do ciclo pós-soarista, que dividiu guterristas e sampaístas. E não só Ferro Rodrigues emergiu como líder parlamentar, mas sobretudo a escola ideológica do PS continuou a vir da sede de pensamento do sampaísmo – ou seja o ISCTE. António Costa era um dos jovens sampaístas em que se apostava, e hoje continua a sê-lo.

Esta dinâmica entre guterristas e sampaístas explica o que se passa dentro do PS, sem que a passagem de José Sócrates pela liderança tenha verdadeiramente alterado os critérios. José Sócrates era uma das facções do guterrismo que tentou fazer pontes com o sampaísmo, de modo a garantir que Jorge Sampaio tivesse um fim de mandato tranquilo e Aníbal Cavaco Silva pudesse suceder-lhe. A sua entourage mais próxima incluía guterristas, como Luís Patrão, e extremistas ou sampaístas leais, como, por exemplo, João Galamba ou Maria Rui (assessora de imprensa de António Costa, juntamente com David Damião). Tudo nomes que fazem hoje o núcleo mais próximo do líder do PS.

 

Guerra interna

Esta fractura interna dentro do PS está presente desde a eleição de António Costa, colocado líder por Jorge Coelho, contra António José Seguro, que aliás também fora empurrado pelo mesmo Jorge Coelho, que já apoiara José Sócrates e participara nas reuniões do sótão da casa de António Guterres a conspirar com Mário Soares, que nunca gostou dele.

E a contagem de espingardas já começou. Dentro do Partido Socialista muitos não acreditam na estratégia de António Costa – de que um mau candidato presidencial engrandece um candidato às legislativas –, e apoiam a iniciativa de Maria de Belém, fabricada nos corredores do ISCTE (pelo reitor Luís Reto), com o apoio de ex-seguristas, como Álvaro Beleza, e apoiada pelos socráticos e por Manuel Alegre.

Basicamente, a iniciativa de Maria de Belém pode ser apenas uma solução de recurso ao centro, depois de ter falhado o nome de António Guterres e de António Vitorino estar limitado por causa dos negócios.

Mas Maria de Belém tem um problema, que são as suas ligações ao mundo dos negócios, e que podem prejudicar a candidatura da presidente do PS, no tempo de José Sócrates.

 

O financiamento de Belém vem da Europeia?

Um elo que faltava na história da candidatura de Maria de Belém é a do financiamento da sua candidatura, sendo que ela não colhe o apoio do partido, caso António Costa resista como líder depois das legislativas.

Recorde-se que o ISCTE se associou ao ISLA para fazerem os dois doutoramentos necessários para que fosse autorizada a Universidade Europeia, a partir do antigo ISLA (um deles aprovado pela A3ES, mesmo com parecer negativo da Comissão de Especialistas). Maria de Belém é patrona da Universidade Europeia, lugar que mantém mesmo depois do escândalo financeiro que levou Bill Clinton a demitir-se da Laureate, a casa-mãe da Europeia, nos EUA.

Por seu lado, Luís Reto é reitor do ISCTE e assume-se como principal apoio da Comissão Política da candidatura de Maria de Belém à Presidência da República.

E do lado de Sampaio da Nóvoa há já quem pergunte: quem paga, em dólares americanos, a campanha eleitoral de Maria de Belém?

A suspeita de ligações às mafias do ensino, do mesmo modo que a sua anterior ligação aos negócios da saúde do antigo Grupo Espírito Santo, pode ensombrar a candidatura de Maria de Belém. Porém, meios próximos da candidata admitem que, na constância da sua candidatura presidencial, a antiga ministra da Saúde e presidente da Assembleia Geral da União das Misericórdias se afaste discretamente dos americanos, para não ser envolvida no caso de alegada corrupção e de utilização abusiva de dinheiros públicos, como denunciou o Congresso dos EUA.

 

O regresso de António José Seguro

Em cima da mesa está ainda a possibilidade de António José Seguro regressar ao activo a 4 de Outubro, depois de uma eventual derrota eleitoral de António Costa. O núcleo de seguristas, que foi excluído das listas a deputados por António Costa e que achou que Álvaro Beleza não os representou condignamente nas negociações com a nova liderança, tem ido semanalmente às Caldas da Rainha pedir a Seguro que esteja preparado para regressar à liderança do partido, como secretário-geral do PS. Estão nesse núcleo Miguel Laranjeiro, Miguel Ginestal e António Galamba.

Mas há nesse grupo quem ache que Seguro não deveria avançar, defendendo a candidatura de Álvaro Beleza a secretário-geral (que poderia contar com os apoios de João Soares ou de João Proença) e reservando para António José Seguro o lugar de presidente do partido.

Depois de uma eventual derrota eleitoral, e a três meses das presidenciais, a divisão do campo socialista em duas ou três candidaturas presidenciais poderia ser fatal para o PS, até porque o partido jamais poderá apoiar um governo da Coligação (ou viabilizar o Orçamento do Estado de 2016), sob pena de trair em definitivo a sua base social de apoio e ficar reduzido a uma base residual, como está a acontecer com todos os partidos socialistas europeus que fizeram coligações ao centro.

Assim sendo, a candidatura às próximas presidenciais pode mesmo vir a tornar-se crítica para o próximo ciclo político. Resguardado do desgaste das legislativas, António José Seguro poderá funcionar como um unificador das candidaturas socialistas e forçando as desistências de Maria de Belém e de Sampaio da Nóvoa.

Além de Álvaro Beleza, também Pedro Nuno Santos (de Aveiro) e Francisco Assis (Porto) são nomes incontornáveis na próxima luta pela liderança do PS, que se seguirá a uma eventual derrota do partido nas legislativas de Outubro.

 

A libertação de José Sócrates

Com o “Correio da Manhã” a anunciar que o antigo primeiro-ministro se prepara para sair da cadeia, e depois da evidente fraqueza de provas de todo o processo, José Sócrates pode aparecer como vítima do sistema, e galvanizar o discurso nacionalista e populista contra o actual sistema político, contra os abusos da magistratura e do Fisco, contra a troika e a austeridade, afirmando-se como vítima de uma conspiração política orquestrada pelo primeiro-ministro Passos Coelho e que não foi denunciada cobardemente por António Costa e pelos seus seguidores.

Sem provas e capacidade para o acusarem robustamente, José Sócrates anulou qualquer possibilidade de suspeição dos juízes, com a venda da casa e o início do pagamento dos alegados adiantamentos feitos pelo seu amigo Santos Silva. Sócrates deverá ser libertado provavelmente a 9 de Setembro, no dia do debate Passos-Costa, numa estratégia que substitui o eventual envolvimento de António Costa na operação Marquês – mais uma ideia da Procuradoria que estava em agenda neste Verão e que poderia depois evoluir para dossiers ligados a Manuel Salgado na Câmara Municipal de Lisboa, mas que foi travada.

Em substituição, a libertação de José Sócrates pode baralhar o jogo de poderes dentro do PS.

Libertado e assumindo o discurso nacionalista que nem Passos Coelho nem António Costa perfilham, Sócrates poderá, como Berlusconi ou Sarkozy, tomar conta do PS ou, não o conseguindo – e sobretudo se houver um bloco central ou o PS apoiar um governo de iniciativa presidencial, ou viabilizar um Orçamento do Estado da Coligação –, criar um novo partido nacionalista de esquerda e, eventualmente, aproveitar as presidências para reaparecer no debate político.

É um cenário que pode baralhar todas as expectativas anteriores, até porque, com essa estratégia, Sócrates acaba de vez com o Partido Socialista e cria uma nova dinâmica à esquerda, com uma maior fragmentação política, o que poderá fazer deslocar o centro do sistema político.

 

António Costa em campanha

Ao actual líder do PS resta a campanha para as legislativas, depois da desautorização de Maria de Belém e da luta fratricida nos bastidores. Regressa de férias, para a rentrée, este fim-de-semana.

A campanha do Partido Socialista tem agora um novo director que o partido foi buscar à Câmara Municipal de Lisboa, com António Costa acantonado com o seu pessoal político, até agora coordenado pelo social católico Ascenso Simões (que se demitiu, depois da polémica dos cartazes) e tendo por chefe de gabinete Luís Patrão, o experiente chefe de gabinete de Guterres e Sócrates.

Neste final de Agosto, Ascenso Simões deu o mote para a estratégia da campanha, um território onde Costa parece perdido. Escreveu no seu Facebook as constatações seguintes em jeito de manual de campanha:

  1. Não consigo encontrar correspondência entre o que as pessoas nos dizem na rua e as sondagens. A rejeição do Governo, mesmo em concelhos mais conservadores, é muito nítida;
  2. Identifico um descrédito, que leva um maior número de pessoas a dizer que não vai votar, ou que os políticos são todos iguais;
  3. As acusações ao PS sobre a bancarrota só se ouvem por parte dos mais aguerridos militantes do PSD, não sendo motivo de discussão ou grande rejeição, como acontecia em 2002 com o “país de tanga”;
  4. A mensagem do PS sobre a privatização ou venda (como as pessoas lhe chamam), por parte da Coligação, da saúde e das pensões é transversal no argumentário usado pelas pessoas;
  5. As questões do emprego e as propostas do PS, quando explicadas, não são completamente entendidas porque há uma desconfiança relativamente a varinhas mágicas;
  6. Os comerciantes falam do IVA da restauração e do aperto fiscal feito pelo Governo; os pequenos industriais falam da falta de tesouraria e do atraso nos pagamentos; os agricultores falam no esquecimento da agricultura familiar;
  7. Os jovens ouvem mas não acreditam muito nas nossas propostas, porque o argumentário é complexo e, por muito que façamos, pouco imaginativo;
  8. No Alto Tâmega as pessoas falam quase todas sobre os graves problemas da saúde;
  9. No Douro as pessoas falam da Casa do Douro e dos valores baixos com que se compram as uvas.

Chegará este manual para levar Costa até ao fim?

  1. Na área de influência de Vila Real as pessoas falam da perda de rendimentos, do hospital, da universidade e do afastamento do poder central.

Toda uma agenda que o pessoal de Costa leva para o terreno, mas já pouco convicto numa vitória.