Um dos argumentos jurídicos fundamentais em relação à crise da dívida grega é que uma reestruturação da dívida da Grécia seria incompatível com as regras contidas no articulado do Tratado da União Europeia (UE). O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, foi um dos que afirmou que um corte da dívida seria incompatível com a adesão à própria Zona Euro. Claramente não há consenso sobre este princípio. Veja-se a interpretação feita pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que noutros casos sugere que o alívio da dívida pode estar abrangido pelos tratados.
Uma e outra vez o governo alemão tem enfatizado que a União Monetária Europeia e a sua governança estão baseadas em regras, e que estas regras são concebidas para evitar decisões de contracção de empréstimos irresponsáveis e reforçam o mecanismo de mercado na monetização de dívidas soberanas. Este raciocínio está subjacente num documento interno do Ministério das Finanças alemão, datado de 10 de Julho de 2015, que comenta as propostas da dívida grega do dia anterior.
Na verdade, o paper menciona explicitamente um dos pilares do quadro regulamentar da União Económica e Monetária, a chamada “cláusula de não bail-out”, prevista no artigo 125º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), e que, na sua parte relevante, prescreve que os Estados-membros não serão responsáveis por assumir compromissos de outro Estado-membro… A partir daqui, é toda uma aparentemente convincente e implacável lógica que se desenrola no documento alemão.
Duas soluções são identificadas:
- Ou a Grécia permanece na Zona Euro, caso em que a imensa dívida não poderá ser reestruturada porque qualquer alívio seria uma violação do art.º 125 do TFUE. Portanto, a Grécia é obrigada a empreender grandes esforços para alcançar a sustentabilidade da dívida de outras maneiras, incluindo a transferência de 50 mil milhões de euros de valiosos activos gregos para um fundo externo, que, em seguida, serão vendidos para pagar a dívida.
- Ou, alternativamente, a Grécia sai temporariamente da Zona Euro (o paper fala de um “time-out” de cinco anos), para que as dívidas possam ser perdoadas ou reestruturadas fora das restrições da união monetária.
Enquanto as escolhas são duras – continuação da inclusão da Grécia na zona do euro, mas privatizações de longo alcance e uma consideravelmente mais extensa perda de soberania do que em propostas anteriores e acordos de assistência ou, em alternativa, a saída da zona do euro, mas o alívio da dívida –, o paper é ostensivamente sincero e redigido com o desejo de encontrar uma solução para um problema político e económico extraordinariamente complexo dentro das limitações constitucionais da Eurozona, com base nas regras de um Estado de Direito.
A Grécia, é evidente, tornou claro que deseja permanecer dentro da Zona Euro, o que deixa o governo grego com apenas uma escolha, como se verificou no Conselho Europeu antes do acordo de princípio. No entanto, seguindo a lógica da tomada de posição, esta não é uma função de chantagem, como alegado por alguns comentadores, mas a necessidade de respeitar o quadro baseado em regras da união monetária, sem o qual esta não poderia funcionar correctamente.
É claro que as regras têm sido flexibilizadas para outros Estados-membros e sobretudo foram anteriormente violadas por alemães, franceses e holandeses, pelo que a actual interpretação restritiva dos tratados é vista como o diktat alemão e levou a Europa emocionalmente a colocar-se do lado dos gregos, contra a Alemanha, e Passos Coelho e Mariano Raroy que, por razões internas eleitorais, apoiaram os alemães.
Pelo mesmo raciocínio, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, continua a enfatizar que uma saída da Grécia da Zona Euro seria a melhor opção, mesmo após se ter chegado a acordo na cimeira da Zona Euro de 12 de Julho. Schäuble afirmou que a dívida da Grécia poderia então ser reestruturada, enquanto um “corte da dívida é incompatível com a pertença à união monetária”. Com efeito, como foi relatado na imprensa financeira, Berlim sinalizou que “a Alemanha iria apoiar generosamente Atenas, incluindo um corte da dívida”, no caso de um Grexit.
O problema com essa lógica é que ela é baseada numa premissa falsa: que há uma interpretação correcta, evidentemente, do art. 125º do TFUE, e que esta interpretação proíbe o alívio da dívida de um Estado-membro da Zona Euro.
As questões legais são controversas, mas uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre uma questão relacionada, a compatibilidade do auxílio ESM (European Stability Mecanism) com o art. 125º do TFUE, dá alguma orientação.
O Tribunal explica que o art. 125º do TFUE “não se destina a proibir a União ou os Estados-membros de concederem qualquer forma de assistência financeira a outro Estado-membro». O Tribunal de Justiça distingue, portanto, entre a assunção de um compromisso existente e a criação de um novo. Este último está em conformidade com o Tratado, «desde que as condições associadas à assistência sejam susceptíveis de levar esse Estado-membro a aplicar uma política orçamental sólida. Assim, nem apoio financeiro sob a forma de uma linha de crédito ou empréstimos, nem compras de títulos soberanos no mercado primário para a assunção de dívidas existentes de um Estado-membro, são contra o art. 125º do TFUE. Da mesma forma, a compra de títulos no mercado secundário não está em violação da cláusula de não-socorro, porque o preço pago é determinado pelas “regras da oferta e da procura no mercado secundário dos títulos”, ou seja, o risco de falência é, presumivelmente, já descontado no preço.
É controverso se o art. 125º do TFUE deve ser interpretado literalmente, como as citações acima parecem indicar (para um panorama do debate na literatura jurídica alemã, ver a contribuição por Eberhard Grabitz, Meinhard Hilf e Martin Nettesheim). Note-se que a interpretação do próprio Tribunal de Justiça pode ser vista como levantando algumas dúvidas quando menciona que, no âmbito do Tratado do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), “qualquer assistência financeira… deve ser reembolsada ao MEE pelo Estado-membro destinatário e… o montante a ser reembolsado é incluir uma margem adequada”.
No entanto, resulta claramente do acórdão que a admissibilidade de medidas de assistência deve ser avaliada no âmbito de art. 125º do TFUE e não no Tratado MEE/ESM. A provisão destina-se a abordar o problema do risco moral que surge quando as dívidas são mutualizadas, incentivando os Estados-membros para manter a disciplina orçamental. Para atingir este objectivo, é essencial que o Estado-membro esteja sujeito à disciplina do mercado ex ante, ou seja, o mercado não fixar um preço aos títulos do governo com base na expectativa de que o Estado-membro receberá assistência financeira quando este tem uma crise de liquidez. Por outro lado, se o MEE é reembolsado na totalidade, e se ele cobrar uma margem adequada, não influencia as expectativas do mercado e, consequentemente, mantêm-se os incentivos para os Estados-membros manterem a disciplina orçamental antes que ocorra uma crise de liquidez.
Não obstante as ambiguidades do acórdão, a interpretação do Tribunal de Justiça é, naturalmente, vinculativa para os Estados da União. Por várias razões, a decisão do Tribunal sugere que o alívio da dívida não fere o Tratado. Se a concessão de apoio financeiro sob a forma de criação de uma nova dívida, sob rigorosa condicionalidade, não é qualificada como assumindo os compromissos de outro Estado-membro, é difícil argumentar que a concessão de mais ajuda sob a forma de a redução dessa mesma dívida pelo mesmo credor, novamente sob rigorosa condicionalidade, possa ser julgada de forma diferente. Além disso, ela parece contemplar ainda a reestruturação da dívida, estendendo que é possível alterar a data dos vencimentos no âmbito do quadro legal existente. Se este for o caso, é difícil entender por que uma operação que tem o mesmo efeito económico, nomeadamente a redução do valor nominal em dívida, deva ser ilegal.
Finalmente, como o advogado-geral do TJUE salientou, uma vez que o texto da disposição não é totalmente claro, devemos estar conscientes de que um dos grandes objectivos da União é a promoção da “solidariedade entre os Estados-membros” (Art. 3º ( 3) Tratado da União Europeia), que milita contra uma interpretação restritiva do art. 125º do TFUE. Pode ser afirmado que estes argumentos não resolvem a questão, mas é claramente problemático afirmar que o art. 125º do TFUE inequivocamente proíbe a reestruturação das dívidas de um Estado-membro e desconsiderar qualquer interpretação alternativa, em especial, uma que iria promover um princípio fundamental da União – o da solidariedade entre os Estados-membros.
Se esta visão for correcta, e dado que é quase universalmente aceite, a Grécia deveria receber um alívio parcial da dívida. Mas fica uma questão por responder: por que a Alemanha, outrora um dos campeões mais importantes da integração europeia, adoptou uma postura unilateral tão intransigente? Seja qual for a motivação subjacente, o verdadeiro problema com a abordagem do governo alemão é que ele convida à contemplação de certas possibilidades desagradáveis: como a das relações entre os Estados-membros dominadas por vingança, intimidação e assédio moral. É difícil avaliar a veracidade dessas alegações, mas o facto de chegarmos aqui não augura nada de bom para o projecto europeu.
Esta semana estão em Atenas representantes de segunda linha das antigas instituições da Troika e do Mecanismo Europeu de Estabilidade para discutir com o governo de Tsypras a carta de intenções do 3.º Resgate. Tsypras, por sua vez, enfrenta o colapso da sua maioria no parlamento e ameaça o seu partido com um congresso para Setembro, admitindo-se mesmo a possibilidade de eleições antecipadas.